Manter a concentração nos estudos é, em si, desafiador para crianças e adolescentes. Em uma metrópole como Fortaleza, o trânsito intenso e ruidoso ao redor de escolas torna a tarefa ainda mais árdua – e gera prejuízos desde o aprendizado até a saúde dos estudantes.
Professora de uma escola privada situada em uma das avenidas mais movimentadas da capital cearense, Maria*, que preferiu não ser identificada, diz que as aulas no período da tarde – quando ela leciona nas salas mais próximas à rua – “são uma competição entre a voz e as buzinas”.
“A gente se desgasta demais, tem que ter um esforço muito maior pra ser ouvida. E eles (alunos) se distraem, ficam mais inquietos que os da manhã. É bem complicado. Não sei se o menor desempenho deles tem a ver com isso, mas que prejudica o dia a dia, prejudica”, avalia a docente, que às vezes precisa recorrer a um microfone para superar o ruído.
Um estudo de pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) atestou, por meio de entrevistas e análises em três escolas de Fortaleza, os impactos da poluição sonora para o ambiente educacional.
Nara Mesquita, arquiteta e urbanista que integrou a equipe, relembra que diversos docentes relataram problemas na própria saúde vocal e impactos no processo de ensino e aprendizagem devido aos ruídos.
“Os professores falaram que quando tem passagem de avião, trem ou moto, os alunos se desconcentram. Barulhos rápidos e altos desconcentram todas as idades. Os mais próximos do ensino médio sentem isso. Os mais novinhos nem têm muito foco ainda, é mais um motivo pra não prestar atenção na aula. A quebra da atenção prejudica”, cita.
A arquiteta, mestre em engenharia de transportes, destaca que uma das escolas visitadas era “mais horizontal” e, portanto, sofria menos impacto do barulho do trânsito. “O primeiro bloco era administrativo, as salas de aula ficavam mais atrás. É um bom formato”, frisa.
“Tem o problema de como as escolas são montadas. Escolas próximas a vias ruidosas o ideal seria isolar, deixar as janelas fechadas, com ar-condicionado. Garantir a organização das salas para evitar fontes de ruídos”, propõe Nara.
Distração e irritação
Uma função psicológica importante é diretamente prejudicada em ambientes barulhentos: a atenção. Isso representa um risco importante principalmente entre crianças, como destaca Ticiana Santiago, psicóloga, doutora em Educação e consultora do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (Nucepec/UFC).
“Manter o foco é uma construção ao longo do desenvolvimento humano e de aprendizado, muito sensível principalmente na infância e na adolescência. Quando tem um elemento externo que atrapalha a regulação desse processo, interfere diretamente na qualidade dessa aprendizagem”, pondera a professora.
Além disso, Ticiana alerta sobre os impactos do barulho excessivo à saúde mental e à “regulação das emoções” das crianças e adolescentes no ambiente escolar, uma vez que os ruídos “causam irritabilidade, justamente pelo esforço extra que elas têm que colocar para comunicação”. Na educação infantil, o desafio cresce.
Na educação básica, principalmente infantil, o ambiente deve ter qualidade e recursos adequados, interagir com as necessidades da didática. Com crianças, a gente trabalha muito com música e outras interações, nas quais os barulhos externos interferem.
Estudantes em contexto de inclusão, como aqueles com autismo, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e dislexia, exigem, nesse cenário, atenção redobrada., como avalia a professora.
“As escolas são instituições de referência. Oferecer um ambiente seguro é imprescindível, inclusive na perspectiva sonora. Se a escola percebe que tem alguma obra, show, prédio, alguma questão que atrapalhe a dinâmica, deve acionar os mecanismos necessários”, recomenda.
“Também é preciso organizar os espaços de forma a distribuir as salas de aula em lugares mais protegidos”, finaliza Ticiana.
Saúde auditiva em risco
O prejuízo do ruído excessivo em sala de aula, interno ou externo, incide, de fato, sobre duas áreas importantes: o aprendizado e a saúde auditiva de crianças e adolescentes, como avalia Paulo Manzano, médico otorrinolaringologista.
“A lesão auditiva por exposição excessiva ao ruído é de caráter irreversível. Muitas vezes, não é preciso intensidade sonora elevada, mas exposição prolongada elevada”, informa o médico, alertando para o fato de que “vivemos sempre expostos ao ruído excessivo”.
Os níveis de ruídos nas ruas e avenidas, de uma forma geral, são superiores aos níveis de segurança preconizados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Quando passamos a perceber o efeito, é porque já existe uma lesão mais importante.
O médico otorrino aconselha, ainda, que “todas as crianças façam uma avaliação auditiva, caso ainda não tenham realizado”, destacando ainda o progressivo e intenso uso de fones de ouvido, somado aos ruídos da cidade, como fator de risco.
Paulo detalha também os impactos do cenário barulhento aos professores. “O ruído competitivo faz com que eles sejam obrigados a aumentar a intensidade vocal para serem entendidos. A falta de treinamento vocal e condicionamento, além de horas prolongadas, faz com que sejam sejam heróis em tentar ensinar como podem.”
Garantir uma “acústica adequada do ambiente da sala de aula”, então, é imprescindível para proteger a saúde auditiva e vocal de estudantes e docentes.
O que fazer?
A arquiteta Nara Mesquita diz que não existe legislação que defina a distância mínima entre uma escola e uma via de grande fluxo, mas “a NBR (Norma Brasileira) 10151/2000 define o valor de decibéis máximo que hospitais e escolas em zonas de cidade, por exemplo, devem ter na fachada”.
A pesquisadora reitera que a organização das salas, de modo que fiquem situadas mais distantes das vias de grande fluxo de trânsito, ainda é a solução mais possível para reduzir a incidência dos barulhos externos no ambiente de estudos.
“Já fui professora e já sofri com isso. Questões estruturais dentro da sala de aula podem ser revistas, como a utilização de materiais que absorvem mais o som”, sugere.
Outra solução, que Nara reconhece não ser a ideal, mas a mais praticável, é o isolamento do ambiente com vedação de portas e janelas. “E correr, infelizmente, para o uso do ar-condicionado. Em uma das salas que visitamos isso já reduzia bastante o barulho em relação às que tinham ventilador, que em si já produz ruído”, pontua.