Perder uma semana de aulas, tarefas e até provas era item certo na agenda mensal de Maria Clara Ribeiro, de 15 anos. A segurança de ir à escola descia junto à menstruação: sem absorventes disponíveis, a menina era estatística viva dos danos da pobreza menstrual à saúde, à educação e ao próprio futuro.
O cenário mudou em 2022, quando a Escola Municipal José Ramos Torres de Melo, em Fortaleza, onde Maria Clara cursa o 9º ano, tornou-se uma das 292 unidades da rede pública que distribuem absorventes higiênicos gratuitamente a alunas entre 11 e 50 anos de idade.
A ação integra a Política Municipal de Atenção à Higiene Íntima e Saúde Menstrual, instituída por lei (nº 11.192) pela Prefeitura de Fortaleza em novembro de 2021 com o intuito de fomentar a saúde, combater a evasão escolar e quebrar, desde a base, o ciclo da pobreza imposto pelas desigualdades.
Esta é a 1ª reportagem da série especial Sala de Futuros, que mostra como políticas públicas de educação em Fortaleza podem contribuir para efetivar direitos básicos e mudar a trajetória de vida de estudantes e suas famílias, reduzindo desigualdades e segregações por contextos de saúde ou de renda.
“Hoje não é mais vergonhoso”
Fenômeno natural para pessoas com útero, a menstruação ainda é assunto imerso em tabus que contribuem para perpetuar o desconhecimento das pessoas sobre o corpo – ignorância que junto à falta de recursos e de infraestrutura para cuidar do ciclo compõem a pobreza menstrual.
Maria Clara, por exemplo, já sentiu nas veias o impacto desse combo. A adolescente lembra de que “ficava sozinha com os irmãos enquanto a avó trabalhava, e nem entendia bem sobre o período”.
Muitas meninas do 6º ano, por exemplo, não sabiam sobre a menstruação, nem sempre tinham um familiar pra falar. E a primeira menstruação pode ser na escola. Hoje, todo mundo já sabe o que é, sempre tem alguém pra explicar.
Algumas vezes, era pega de surpresa pelo fluxo enquanto se arrumava para ir à escola. “E aí ficava em casa.”
Desde 2022, além da entrega das mais de 4,2 milhões de unidades de absorventes às estudantes, a política conduzida pela Secretaria Municipal da Educação (SME) promove a difusão de informações adequadas sobre saúde íntima e higiene menstrual, bem como ações educativas voltadas não só às meninas, mas aos meninos e familiares.
Já foram investidos R$ 986 mil pela Prefeitura na compra de absorventes para estudantes da rede municipal. Mais de 530,5 mil pacotes foram entregues, do início da política até este ano.
“Uma colega minha mora só com o pai, ela tem vergonha de falar sobre isso com ele. Na escola, ela tem com quem falar, e pega absorventes quando precisa. Eu morria de vergonha de fazer isso. Hoje em dia não é mais vergonhoso. Os professores falam muito, todos já entendem”, destaca Maria Clara.
O que é pobreza menstrual?
No Brasil, em 2021, mais de 4 milhões de estudantes – quase 40% do total – frequentavam escolas que não ofereciam toda a infraestrutura adequada para os cuidados com a menstruação.
O dado é de estudo do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que definiu a pobreza menstrual como “um fenômeno complexo, multidimensional e transdisciplinar”, caracterizado por:
- Falta de acesso a absorventes, coletores menstruais, calcinhas menstruais, etc., além de papel higiênico e sabonete, entre outros;
- Ausência de banheiros seguros e em bom estado de conservação, saneamento básico (água encanada e esgotamento sanitário), coleta de lixo;
- Falta de acesso a medicamentos para administrar problemas menstruais e/ou carência de serviços médicos;
- Insuficiência ou incorreção nas informações sobre a saúde menstrual e autoconhecimento sobre o corpo e os ciclos menstruais;
- Tabus e preconceitos sobre a menstruação que resultam na segregação de pessoas que menstruam de diversas áreas da vida social;
- Questões econômicas como, por exemplo, a tributação sobre os produtos menstruais e a mercantilização dos tabus sobre a menstruação com a finalidade de vender produtos desnecessários e que podem fazer mal à saúde;
- Efeitos deletérios da pobreza menstrual sobre a vida econômica e desenvolvimento pleno dos potenciais das pessoas que menstruam.
Impactos a longo prazo
– Bom dia, aqui é Luciana, diretora da Escola José Ramos Torres de Melo. Estou ligando para saber por que a Fulana não veio à aula hoje. Está tudo bem?
– Ah, ela não foi porque tava menstruada.
Nos 9 anos em que Luciana Mota está na gestão da unidade escolar municipal, o diálogo já se repetiu diversas vezes durante a busca ativa de faltosos. “E elas faltavam porque não tinham absorvente, ficavam em casa e botavam papel, panos. Percebemos essa demanda forte”, lembra.
O tema começou a fazer parte das atividades avaliativas, como maneira de quebrar o tabu. Combater a pobreza menstrual é importante por diversas razões, desde a dignidade, os direitos humanos e a igualdade de gênero até os efeitos à saúde e à autoestima.
Hoje, a educadora se orgulha ao dizer que o acesso ao material de higiene para todas as alunas está a uma batida da porta da própria sala. “Algumas chegam com vergonha, mas vêm à minha sala e pedem. Sempre reforço que isso é algo comum e natural do corpo”, frisa.
Além do combate à pobreza menstrual em si, Luciana observa que a política tem fortalecido o vínculo dos estudantes com a escola. “Elas entendem a escola como parceira, porque muitas vezes não conseguem nem discutir o assunto em casa. Aprendem mais, têm direitos garantidos e aumentam as possibilidades futuras”, frisa a educadora.
“E isso também influencia na saúde delas. A falta desses produtos adequados pode levar a infecções. Algumas vezes, não conseguem ser atendidas de imediato no posto, podendo prejudicar ainda mais”, acrescenta.
Questão de saúde
No Ceará, mais de 300 meninas e mulheres foram internadas por mês, neste ano, por doenças inflamatórias pélvicas (DIP), de acordo com dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) do SUS.
O grupo de enfermidades inclui dor abdominal e pélvica, infecções nos ovários, no útero e em todo o sistema reprodutor feminino. Uma das possíveis causas das DIP é o uso de dispositivos inadequados para conter a menstruação, como explica a ginecologista Nathalia Posso.
“As alternativas caseiras ao absorvente, como panos e outros métodos, são muito perigosas. Os absorventes têm uma estrutura para evitar a contaminação bacteriana e que o fluxo escorra. É mais higiênico e menos propício a infecções”, frisa a médica.
Quando as meninas usam panos, não sabemos como foram lavados, se foram secados direito. Às vezes, reutilizam, ou o mesmo paninho passa por outras mulheres da casa. Isso gera riscos de infecções graves, em qualquer idade.
Do total de internações mensais apontadas pelo SIH, pelo menos 55 são de meninas de até 19 anos, a maioria na adolescência. A dor abdominal e pélvica é a causadora de um terço das hospitalizações.
“A pobreza menstrual pode levar a alterações físicas e até psicológicas. As meninas não querem passar por constrangimento ou sofrer retaliações nos ambientes em que andam, como a escola, e as sequelas podem ser muito impactantes”, alerta Nathalia.
A médica confirma que “muitas meninas deixam de ir à escola e muitas mulheres deixam de fazer suas atividades” quando estão menstruadas – não só pelas dores e desconfortos do período, mas pela falta de produtos adequados para higiene.
Para a ginecologista, além da distribuição de absorventes em si, falar do assunto é crucial. “A escola é um ambiente muito propício para se trabalhar a educação em saúde. Elas têm um papel fundamental de mostrar às meninas a necessidade de utilizar métodos de contenção da menstruação eficazes e, além disso, desmistificar o uso deles.”