A disputa territorial centenária entre Ceará e Piauí encontra, na rotina da população, contornos bem definidos: a maior parte de quem vive na região em litígio busca os equipamentos cearenses para acessar serviços públicos como saúde, educação e segurança pública.
Os dados constam em pesquisa socioeconômica para avaliação de serviços públicos e percepção dos moradores sobre o “sentimento de pertencimento”, divulgada nesta terça-feira (20) pelo Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece).
O estudo também integra a Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), a Universidade Estadual do Ceará (Uece) e secretarias e órgãos estaduais.
A pesquisa ouviu moradores de 417 domicílios, em 84 localidades do Sertão de Crateús e da Serra da Ibiapaba, em 2023. Em domicílios onde algum morador estuda em escola pública, 96,6% estão matriculados no Ceará.
Quando a necessidade é saúde, 89% dos entrevistados declaram que, quando precisam de algum serviço, são atendidos em unidades vinculadas ao Estado ou a municípios cearenses.
Água e energia também são, em maioria, fornecidas pela gestão cearense: a Enel atende a um total de 95,9% dos domicílios, enquanto 96,6% têm as casas abastecidas pela rede geral, cisterna ou carro-pipa providos pelo Ceará.
Já em relação à segurança pública, quando há alguma ocorrência criminal e os moradores precisam recorrer a uma delegacia de polícia, 97% deles buscam equipamentos administrados pelo Ceará.
9 a cada 10 preferem ser do Ceará
O estudo, baseado em entrevistas com os moradores da área em litígio, mostrou ainda que quase 9 em cada 10 pessoas (87,5%) que vivem na área em disputa declaram preferência por pertencer ao Ceará, caso seja preciso escolher.
Do total, 81,8% nasceram no estado cearense, e mais da metade vivem na região há mais de 30 anos. Além disso, mais de 90% dos entrevistados afirmaram que a propriedade onde moram é registrada no Ceará.
A professora Maria Eliane da Silva Gomes, representante do povo indígena Tabajara, do município de Poranga, reforça as implicações histórico-afetivas que existiriam caso os 66% do território poranguense disputados pelos dois estados passassem ao domínio piauiense.
"Temos escolas, postos de saúde e políticas públicas dentro do nosso território. Em nenhum momento nossos ancestrais nos disseram que éramos do Piauí. Como crescer em um estado e pertencer a outro? Jamais vamos deixar de ser cearenses", frisa.
Durante a divulgação da pesquisa, o procurador geral do Estado, Rafael Machado, justificou que “o aspecto humano não poderia ser desconsiderado” na discussão sobre o assunto, e que “além dos aspectos cartográficos, há o elemento incontestável que é o pertencimento”.
“O litígio só existe no papel, e não para as pessoas que residem na região. Território não é apenas terra, mas integrado com pessoas, cultura, história e tradição. Não se pode com uma caneta mudar isso”, declarou o procurador.
Rafael pontuou ainda que as pessoas que vivem na área em disputa “podem ser afetadas de forma intensa”, e que, por isso, o litígio deve ser tratado “com responsabilidade”.
“Não estamos tratando de um litígio econômico, o Ceará litiga não contra o estado do Piauí, irmão nosso que convive com as mesmas dificuldades. Litigamos em defesa da nossa população. Fizemos audiências públicas e é extremamente sensível ouvir as pessoas, que têm um temor em relação ao litígio”, frisa.
Entenda o litígio
A disputa entre os dois territórios é centenária, se estende desde registros cartográficos dos anos 1800; mas ganhou contornos judiciais em 2011, quando o Piauí recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para decidir sobre o impasse.
A área em litígio é de aproximadamente 3 mil km², abrangendo parte dos municípios de Poranga, Croatá, Tianguá, Guaraciaba do Norte, Ipueiras, Carnaubal, Ubajara, Ibiapina, São Benedito, Ipaporanga, Crateús, Viçosa do Ceará e Granja.
Atualmente, de acordo com o procurador geral do Estado, "a ação está em fase de perícia pelo Exército Brasileiro, que vai se ater a documentos históricos e cartográficos". "A pesquisa do Ceará vai agregar elementos humanos a esse processo", complementa Rafael.
De acordo com estudo de Ipece consolidado em 2022, quatro distritos, 48 escolas, 14 unidades de saúde e até 15 locais de votação estão entre os equipamentos situados em regiões disputadas por Ceará e Piauí, além de estradas, infraestruturas viárias e elétricas, entre outras.