Lei de Cotas: cearense é excluído de vaga para Medicina e aprovado em Biologia na mesma universidade

Bancas de avaliação dos critérios da lei na Universidade Estadual do Ceará (Uece) tiveram julgamentos diferentes sobre a cor do estudante

O ingresso do jovem João Victor Uchôa, 24, no ensino superior público tem sido adiado por uma divergência em avaliações da Universidade Estadual do Ceará (Uece). O cearense, autodeclarado pardo, foi reprovado como cotista racial por 3 bancas de heteroidentificação da Uece no vestibular para médico – mas aprovado de primeira para Ciências Biológicas.

Morador de Quixeramobim, a 203 km de Fortaleza, João já se preparava há 5 anos para tentar uma vaga em Medicina, e viu a abertura do curso pela Uece na própria cidade, em agosto de 2023, como oportunidade. Mas mesmo aprovado em 4º lugar, não conseguiu entrar.

A primeira banca me reprovou. Entrei com recurso formal e tive o resultado que fui eliminado do vestibular porque não me consideraram pardo. Conheci pessoas que passaram e têm o fenótipo bem menos acentuado do que o meu, a pele muito clara.
João Victor Uchôa
Técnico de enfermagem

João passou por três comissões: a primeira presencial; a segunda online, após recorrer; e a terceira presencial novamente, depois de entrar na Justiça. Foi considerado branco nas três. “Sou de uma família humilde, filho de agricultores, tive que ir pra cima porque não vou ter outra oportunidade fora essa”, justifica.

Para ingressar numa vaga pela Lei de Cotas na Uece, todo estudante, além de se autodeclarar preto ou pardo, precisa passar pela Comissão de Heteroidentificação. Segundo a Uece, “são consideradas as características fenotípicas do candidato”, como “cor da pele, textura do cabelo e formato do rosto, sobretudo do nariz e dos lábios”.

O processo judicial do estudante contra a Uece continua em andamento. Ele relata que reuniu diversos documentos que comprovam os traços fenotípicos negros, incluindo o laudo de cirurgião plástico “confirmando que tenho um nariz negroide”, e que chegou a procurar o Ministério Público do Ceará (MPCE), mas não conseguiu auxílio.

“Desde que nasci, nunca tive uma concepção diferente a meu respeito. O que eu me considero como pessoa, um homem pardo, a Universidade descartou. Não vou mudar porque a Uece tem uma visão diferente sobre mim”, diz João Victor.

Em nota, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) informou que o estudante foi pessoalmente à sede das Promotorias de Justiça de Quixeramobim, porém estava sem a documentação necessária para que fosse iniciado qualquer procedimento. "No entanto, ele foi orientado sobre a necessidade de apresentar os documentos que comprovavam a situação para embasar a atuação do MP e sobre a possibilidade de impetrar um Mandado de Segurança em desfavor da banca", diz o órgão. 

"O estudante também foi informado de que poderia fazer o peticionamento eletrônico, caso desejasse, através de link direto que lhe foi passado. Apesar das orientações, o estudante nunca retornou à Promotoria", complementa a nota.

A 1ª Promotoria de Justiça de Quixeramobim reforçou, ainda, que "está a disposição para fazer qualquer atendimento pessoalmente, pelo WhatsApp no número (88) 3441 3738, ou através do e-mail secexecutiva.quixeramobim@mpce.mp.br".

“Me tornei pardo em 6 meses?”

Na saga para “provar que a Uece estava errada”, João Victor prestou vestibular novamente, desta vez para o curso de Ciências Biológicas no campus da universidade em Quixadá. Foi aprovado dentro da Lei de Cotas, seguiu para a Comissão de Heteroidentificação e, de primeira, foi reconhecido como pardo.

O resultado saiu no último dia 9. “Pra Medicina, quase 15 pessoas me avaliaram e disseram que não sou pardo. E quando tento outro curso, me torno pardo em menos de 6 meses?”, questiona João Victor, que não pretende se matricular no curso de Biologia.

“Não quero cursar, só fiz o vestibular pra provar que a Universidade estava errada. Eu tenho a convicção do que eu quero ser e da carreira que eu quero seguir, que é de médico”, sentencia o jovem, que já atua como técnico de enfermagem.

O Diário do Nordeste procurou a Uece e o MPCE para obter respostas sobre a história do estudante.

Em nota que não menciona especificamente o caso de João Victor, a Uece reiterou que “a política de cotas étnico-raciais, instituída no Ceará por meio da Lei 16.197/2017, tem como destinatárias pessoas negras (pretas ou pardas) que, em razão de suas características fenotípicas, sofreram e sofrem discriminação e preconceito raciais que as impedem de ter acesso ao ensino superior público nas mesmas condições de pessoas brancas”.

A instituição acrescenta que “o procedimento e a comissão de heteroidentificação foram instituídos por meio da Resolução 1657/2021 do Conselho Universitário (Consu), e é nos termos desta Resolução e em respeito à lei estadual de cotas que as comissões atuam, com legitimidade para emitir parecer”.

“É de suma relevância destacar que cada comissão, formada por 5 membros, atua de forma independente, avaliando objetivamente as características fenotípicas do candidato”, segue a nota.

As características fenotípicas, já mencionadas no início desta reportagem, “combinadas ou não, permitirão validar ou invalidar a condição étnico-racial afirmada pelo candidato autodeclarado negro, para fins de matrícula, de contração ou de nomeação junto à Funece/Uece”, complementa a universidade.

A Uece destaca ainda que “a cada vestibular ou a cada novo processo seletivo realizado pela universidade é feita uma nova avaliação, por uma comissão que atua de forma independente, conforme previsto na Resolução”.

“Nas hipóteses de judicialização de demandas contra a Funece, serão respeitadas as decisões emanadas, procedendo-se ao cumprimento de liminares e/ou sentenças, bem como a impetração dos respectivos recursos em defesa desta IES que, a depender do tipo de ação, são executados diretamente pela Procuradoria Geral do Estado (PGE)”, frisa.

Sobre as Comissões de Heteroidentificação, a universidade informou que são “preferencialmente formadas por um professor, um servidor técnico-administrativo e um representante da comunidade externa, vinculados a outras instituições de ensino superior e/ou a organizações sociais, sendo, na comissão com 5 membros, incluído um representante dos estudantes e outro membro servidor da Uece (professor ou técnico-administrativo”.

Por fim, a Uece aponta que, para compor as comissões, os membros “devem ter conhecimento comprovado acerca da temática de relações étnico-raciais ou serem reconhecidos pela atuação em programas e em projetos que visem à igualdade étnico-racial e ao enfrentamento do racismo devidamente capacitados por meio de cursos”.

Já o MPCE, sobre o pedido de orientação de João Victor não atendido, não enviou resposta até esta publicação.