Fortaleza tem 13 Caps infantis a menos do que o ideal e fila pode passar de 6 meses, alerta Cedeca

Defensoria e Ministério Público do Ceará têm observado crescimento de demandas por atendimento especializado na capital

Milhares de crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes buscam, mensalmente, os Centros de Atenção Psicossocial Infantil (Capsi) de Fortaleza para atendimento especializado. Mas a espera para conseguir uma vaga pode passar de seis meses

Um dos fatores que explica esse tempo é o número de unidades. A capital cearense conta com três centros, quando deveria ter 16, alerta o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca). O quantitativo ideal é apontado pela entidade a partir da análise entre a quantidade de habitantes de Fortaleza e o que estabelece uma portaria do Ministério da Saúde.

Além de pessoas em sofrimento psíquico, os Caps infantis recebem casos que envolvem uso de substâncias psicoativas de pacientes com até 15 anos. Em 2023, a média de atendimentos mensais foi de 3,5 mil nos três equipamentos municipais, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde (SMS). 

De acordo com a avaliação do Cedeca, essa alta demanda aliada ao tempo de espera pode motivar transtornos mentais mais graves.

“Nós temos crianças e adolescentes que vão atrás de um primeiro atendimento e, como a demanda é muito grande, conseguem após uma média de três a seis meses de espera. Então, um paciente que está, por exemplo, com algo que poderia ser tratado com atividades ou medicações de baixo custo, como demora muito tempo para receber atendimento, esses casos acabam ficando mais complexos”
Ingrid Lorena
Coordenadora do núcleo de Monitoramento do Cedeca Ceará

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SEM PREVISÃO

A manicure Ruilene Nunes é mãe de Victor Gael, de 4 anos. O menino havia sido diagnosticado com autismo de suporte nível 1, considerado o grau mais leve do transtorno, mas teve o quadro agravado depois de não conseguir atendimento público.

Ela conta que buscou o Capsi do bairro Rodolfo Teófilo, após ser orientada por uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Mas, no equipamento, recebeu o retorno que eles deveriam buscar a rede do Sistema Único de Saúde (SUS).

“Lá eles só deram o diagnóstico que meu filho era o suporte 2, mas não têm esse atendimento. Ele precisa de neuropediatra, fonoaudiólogo, terapia e medicação, mas lá eles não me deram nada disso. Só mandaram procurar o SUS e ir para essas filas de espera. O neuropediatra dele eu estou há mais de ano na fila”, relatou Ruilene. 

Professora do Departamento de Psicologia da UFC e integrante do Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação (VIESES), Vládia Jucá explica que Fortaleza registra uma insuficiência em termos quantitativos desses serviços. Para a pesquisadora, uma intervenção precoce poderia evitar agravos e a intensificação de transtornos mentais.  

“Uma pessoa em sofrimento psíquico não deveria passar por uma fila de espera, em que não há uma previsão de quando vai ser chamada e se perde um tempo muito precioso. Nós deveríamos ter uma pronta-escuta. Mas, diante dessa configuração de poucos serviços e de ausência de uma qualificação, a tendência é dizer que ‘não temos como atender’”, destaca a especialista, que também é participante da Rede de Pesquisadores em Saúde Mental da Criança e do Adolescente.

FILA DE ESPERA

Em alguns casos, o tempo de espera pode chegar a dois anos, segundo a defensora pública Yamara Lavour, supervisora do Núcleo de Defesa da Saúde da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE). Embora não tenha dados detalhados por especialidade, o órgão tem observado o crescimento da judicialização para conseguir o serviço na capital.

“Em relação ao atendimento de crianças e adolescentes, tivemos um aumento expressivo de demandas relacionadas a consultas com neuropediatras e psiquiatras infantis, bem como atendimento multidisciplinar com profissionais de psicologia, terapia ocupacional e fonoaudiologia. A maioria aguarda há bastante tempo em fila de espera para consultas especializadas e terapias”, evidencia Lavour.

Conforme dados da SMS obtidos pelo Cedeca, cerca de 5 mil pessoas estavam na fila de espera em dois dos centros de Fortaleza, até agosto de 2023.

A espera por atendimento inclui especialidades como psicologia, terapia ocupacional e psiquiatria. O número não contabilizava pacientes da unidade do bairro Granja Portugal, inaugurada no mesmo mês em que os índices foram repassados. 

O Diário do Nordeste questionou a Secretaria Municipal de Saúde sobre o número atualizado de pessoas na fila de espera, mas não recebeu retorno.

ATENDIMENTO

A pasta aponta que os Capsis de Fortaleza funcionam com o serviço ‘porta aberta’, ou seja, o usuário pode procurar diretamente ou ser encaminhado por meio de outros serviços da rede de saúde. 

Nas unidades, os pacientes devem ser assistidos por uma equipe multiprofissional composta por médico psiquiatra, psicólogos, enfermeiros, assistente social e terapeuta ocupacional.

Mas, conforme avaliação do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), o serviço não tem conseguido atender a necessidade dos usuários da capital. A instituição também tem recebido relatos de dificuldades relacionadas à marcação de consultas, filas de espera e escassez de médicos.

“Fortaleza tem uma rede insuficiente para a demanda. Poucos equipamentos foram acrescidos à RAPS [Rede de Atenção Psicossocial], enquanto vemos o grande aumento da demanda em saúde mental, especialmente após a pandemia”
Ana Cláudia Uchôa
Promotora titular da 137ª Promotoria de Justiça de Fortaleza

ORÇAMENTO

De acordo com a análise do Cedeca Ceará, outro fator que mostra a insuficiência do serviço está na discrepância entre o orçamento que é previsto e o que é executado pela Lei Orçamentária Anual (LOA), de fato. 

A partir do Portal da Transparência de Fortaleza, a entidade observou que 0,0% do valor previsto para implantação dos pontos de atenção da rede psicossocial foi executado entre 2018 e 2022.

Para Ingrid Lorena, o orçamento municipal para a ampliação e manutenção da rede não tem sido incentivado da forma como deveria. Isso acarreta consequências negativas no acesso. 

“É um impacto que afeta não só o direito dessa criança e desse adolescente, mas esse não atendimento tem agravado o adoecimento. Os Capsis precisam estar articulados com o posto de saúde, com o CRAS [Centro de Referência da Assistência Social] dos bairros, com a escola. Se um equipamento apresenta todas essas fragilidades, a rede de desenvolvimento também vai ter fragilidade”, analisa a coordenadora do núcleo de Monitoramento do Cedeca Ceará.

Além disso, um levantamento do Diário do Nordeste comparou os valores previstos na LOA de Fortaleza para ampliar e reformar a rede psicossocial. Entre 2018 e 2024, houve redução de 31% do investimento aguardado, passando de R$ 6,67 milhões para R$ 4,59 milhões.

A SMS também foi acionada em relação à diferença dos orçamentos previsto e executado, mas não retornou. A pasta informou apenas o investimento por mês para a manutenção de cada unidade.

R$ 1.264.292,02
Valor mensal para manter os três centros no custeio com alimentação, profissionais e manutenção

A secretaria afirmou ainda que, desse montante, “o Ministério da Saúde realiza repasse mensal de 81,68 mil. O restante do valor, 93,54%, que equivale a mais de R$ 1 milhão, é custeado pelo tesouro municipal.”

AMPLIAÇÃO DA REDE

Em nota, a Secretaria de Saúde de Fortaleza reforçou que “vem trabalhando no fortalecimento da Rede Municipal”. A pasta explicou ainda que, além da entrega do Capsi na Granja Portugal, em 2023, requalificou a sede do bairro Rodolfo Teófilo. 

Além disso, um novo Capsi deve ser entregue na Regional de Saúde II em 2024. Embora a pasta não tenha confirmado o mês de inauguração da unidade, o MPCE anunciou que o município propôs a implantação até julho.

OUTRAS AÇÕES

A professora Vládia Jucá defende que a ampliação da rede é apenas um dos fatores para uma melhor assistência de saúde mental às crianças e adolescentes em Fortaleza. Para a pesquisadora, o aperfeiçoamento também passa pela convocação de novos profissionais, em que seja valorizada os especialistas da área da saúde mental, e o reforço do trabalho nos territórios, por meio de parcerias com outros equipamentos, como escolas e centros culturais.

“Ao fazer esse trabalho no território, que faz parte do que está preconizado para um Capsi, ele consegue chegar a fazer um trabalho antes que as pessoas adoeçam até o ponto de precisar de serviços especializados. (...) O Capsi, além de tratar de quem já está doente, tem um papel muito importante na promoção da saúde mental”, enfatiza Jucá.

No mesmo sentido, Ingrid Lorena avalia que três ações iniciais devem ser priorizadas para uma mudança no atual cenário. 

“É preciso fortalecer uma ação intersetorial entre as diversas políticas de atendimento de infância e adolescência. Por exemplo, quando a gente fala de saúde integral, a gente tem que ampliar e melhorar a qualidade de atendimento nas unidades básicas de atendimento e a quantidade de centros psicossociais infantis na cidade de Fortaleza. A gente tem que ampliar o orçamento destinado à área, não só no que é previsto, mas garantindo que isso seja executado”, frisa a gestora do Cedeca Ceará.