Foi no início da tarde do dia 8 de agosto, durante o seu expediente de trabalho, que a professora Maria Jardênia Alves Lima, 42 anos, recebeu a notícia de que o Sítio Histórico do Patu, Campo de Concentração do Ceará, teve tombamento definitivo aprovado. Neta de um sobrevivente, ela cresceu escutando as duras histórias que se passaram no local.
A decisão pelo tombamento foi tomada pelo Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural do Estado do Ceará (Coepa). No dia 17 de agosto, Dia Nacional do Patrimônio Histórico, a conquista já foi comemorada pelos familiares das vítimas.
Para Maria, a certeza do não esquecimento das ruínas do sítio localizado em Senador Pompeu, a cerca de 270 km de Fortaleza, foi uma “alegria indescritível”.
“Considero um reparo histórico e social para a memória de todas as pessoas, que como meu avô Joaquim sofreram no Campo de Concentração”.
Joaquim Alves Barbosa, que faleceu aos 101 anos em 2022, foi um dos mais de 20 mil retirantes do Ceará que ficaram concentrados no Patu. Ele chegou ao local aos 12 anos, acompanhando o pai, a mãe e os dois irmãos.
Após um ano, ele, a mãe e um irmão conseguiram sair. No entanto, o pai e o outro irmão não sobreviveram. “Foram vítimas fatais e ficaram enterrados em valas cavadas por aqueles que ali compartilhavam do mesmo sofrimento”, relatou Maria.
As memórias dos tempos da seca marcaram a vida do avô, que guardava com detalhes as violências sofridas e a dureza da fome.
“Quando pequena, ouvia ele contar sua história com um olhar de sofrimento, mas no final de sua vida, ao perceber a valorização que estavam dando aos fatos, passei a perceber um brilho no olhar de meu avô a repetir a mesma história”, comentou.
Jardênia aponta que a iniciativa do avô em compartilhar as vivências contribuiu para o tombamento do Sítio Histórico do Patu.
“Ele costumava me dizer que ‘valia apena está vivo para contar sua história e saber que as pessoas achavam importante, que o sofrimento não foi em vão’".
'Tudo morria de fome'
Já no caso de Alzira Lucinda Morais de Lima, 70 anos, foi através do pai que soube da história do Campo de Concentração do Patu. Quando completou dez anos, o agricultor Antônio de Moraes lhe levou para que conhecesse as ruínas do local em que ele sobreviveu entre os anos da seca.
“Ele me levou lá, mostrou o local que os gados morriam de fome, as ossadas de cachorro. Tudo morria de fome. Os ricos só faziam matar para eles, o resto podia morrer tudo de fome. Fome mesmo, minha filha”, relatou.
Na época, Antônio era uma das crianças responsáveis por cavar as covas em que seriam deixados os mortos. “Todo dia morriam três pessoas de fome. Ele ficou muito triste e chorava porque nesse tempo era ainda muito pequeno”.
MIL PESSOAS MORRERAM aproximadamente no Campo de Concentração de Senador Pompeu. Não se sabe exatamente o total de mortos pois, na época, não existia certidão de óbito e os documentos foram destruídos.
Devido à dor de ver "tanto sofrimento", o pai fugiu para um município próximo de Senador Pompeu. No entanto, os oficiais pediram para que os pais de Antônio buscassem ele de volta. Após seu retorno, passou a carregar tijolos para construir os prédios da barragem.
Mesmo depois do falecimento de seu pai, Alzira comemorou o tombamento. “Se ele fosse vivo ele gostaria muito, viu? Eu me sinto maravilhosa com essa notícia”.
Projetar um futuro sem os erros do passado
Para o advogado e militante de movimentos sociais, Valdecy da Costa Alves, o tombamento tem um caráter político e histórico importante por preservar as ruínas de Senador Pompeu. “Nós temos que preservar toda essa memória para aprender com os erros do passado e construir um futuro melhor”.
“Nós não podemos admitir mais governos que excluam, que coloquem campos de concentração para escravizar as pessoas como mão de obra e matar de fome dando uma refeição por dia sem assistência médica nenhuma, abandonados à própria sorte”.
Nascido em Senador Pompeu, Valdecy percebe que o movimento de não permitir a destruição das ruínas possibilita que a sociedade avalie as políticas públicas adotadas naquele período, que não foram capazes de corrigir a exclusão social, a miséria e a fome.
Em 2014, Valdecy chegou a ingressar com uma Ação Civil Pública exigindo a restauração e preservação do sítio histórico.
“Esse é o único preservado", reforçou. "O tombamento deixa essa memória viva. Nós podemos aprender com ela, compreender nosso processo político, corrigir os erros do passado e não repeti-los".
Campo de Concentração do Patu
O Campo de Concentração de Senador Pompeu, assim como outros que existiram no Ceará entre os anos de 1915 e 1932, serviram de “apoio” às vítimas das secas. Estima-se que cerca de 73 mil flagelados foram confinados nesses campos, onde as condições eram desumanas, o que resultou em inúmeras mortes.
Conforme pesquisas feitas por Valdecy, no fim de abril de 1932, além do Patu, foram criados outros seis campos de concentração à beira da ferrovia que ligava Fortaleza a Crato.
Foram os campos do Buriti, no Crato; de Cariús; de Quixeramobim; o do Ipu, no Norte do Estado; e ainda de Otávio Bonfim, e do Urubu, em Fortaleza.
A ação buscava evitar que os flagelados chegassem em Fortaleza. Valdecy apontou que, proporcionalmente, o campo do Patu foi o que mais registrou mortos na história das secas.