Os Conselhos Tutelares são a principal porta de entrada para a qual se direcionam as demandas de violação ou não atendimento aos direitos assegurados de crianças e adolescentes de 0 a 17 anos. Em Fortaleza, nos últimos quatro anos - período do mandato mais recente de conselheiros eleitos -, foram registradas mais de 8,5 mil demandas nas oito unidades da Capital.
Os dados foram consultados pelo Diário do Nordeste no Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (Sipia), plataforma pública nacional de registro e defesa dos direitos fundamentais dispostos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Segundo a Prefeitura, os conselheiros de Fortaleza usam o Sipia desde 2019.
Conforme o levantamento, o acesso à rede pública de ensino ainda é o principal entrave. No Ensino Fundamental, essa dificuldade ocupa a 1ª colocação, com 2,4 mil casos. Já na educação infantil, aparece em 3º no ranking geral, com 1,2 mil violações.
Negligências do núcleo familiar - incluindo omissão no cuidado com a saúde, alimentação e higiene e falta de apoio emocional e psicológico - aparecem em segundo, com 1,3 mil atendimentos. Ausências de atendimento em saúde e violência sexual também encabeçam a lista.
Por meio desses dados, são produzidos conhecimentos geolocalizados sobre as situações concretas de violações aos direitos e as respectivas medidas de proteção. Isso permite o mapeamento da condição de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social para a adoção de políticas públicas de resposta.
Segundo Raimundo Gomes de Matos, presidente do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Fortaleza (Comdica), o papel dos conselheiros é fazer a escuta sigilosa dos casos; dar as providências cabíveis e fazer articulações com a rede de proteção. Em breve, os novos eleitos para o mandato 2024-2028 passarão por uma capacitação para conhecer tais mecanismos.
Ainda conforme o gestor, a Prefeitura tem tomado ações práticas para coibir diversas violações levadas ao conhecimento dos conselhos. Uma delas é o diálogo com shoppings e restaurantes para identificar casos suspeitos de exploração sexual de menores. Outra é a ampliação do número de creches e vagas conveniadas para dar conta da demanda por educação.
Mônica Sillan, integrante do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedca-CE), entende que alguns desafios históricos estão mais agudos. A fome e a pobreza extrema, por exemplo, retornaram nos últimos anos com a pandemia e a estagnação de políticas de assistência social.
Outro problema urgente, para ela, é encarar a transição da infância para a juventude. “Temos muitos adolescentes com ideação suicida, problemas psíquicos, depressão, anorexia, TDAH. Muitos deles estão em sofrimento e fazendo uso de medicação controlada”, observa.
A assistente social percebe que a educação tem desafios “gigantescos” e não dá conta, sozinha, de encarar esse desafio e garantir atendimento especializado em todas as escolas. Apesar disso, ela tem percebido maior esforço das gestões, sobretudo no Ministério da Educação, em garantir mais aporte financeiro - começando por temas básicos, como infraestrutura e merenda escolar.
A reportagem consultou a Secretaria Municipal de Educação (SME) sobre ações para ampliar o número de vagas da creche ao Ensino Fundamental, mas ainda aguarda retorno.
Em nota enviada ao Diário do Nordeste, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) informou que realiza ações de combate à violência contra a criança e o adolescente que abrangem desde a formação inicial e continuada dos servidores da Segurança até as ações de policiamento ostensivo e investigativo e o atendimento humanizado às vítimas.
A pasta ainda destacou a existência da Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente (Dceca) e a atuação do Núcleo de Atendimento Especial à Mulher, Criança e Adolescente (Namca) — da Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce) — como um "espaço seguro, privativo e humanizado". A SSPDS reforçou que realiza ações nas escolas de combate à violência sexual, entre outras temáticas.
Em janeiro de 2023, também foi criado o Grupo de Despacho do Copac (GD-Copac) da Polícia Militar do Ceará (PMCE), que garante um atendimento diferenciado já na ligação para o Disque 190 ao enviar uma equipe do Grupo de Apoio às Vítimas de Violência (Gavv), um dos núcleos do policiamento especializado, para acompanhar denúncias sobre violência contra crianças e adolescentes, mulheres e demais integrantes dos grupos vulneráveis.
Novos conselhos na cidade
Os Conselhos Tutelares estão em expansão, aumentando de oito para 12 unidades até 2024, de acordo com Raimundo Gomes de Matos, presidente do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Comdica). Como cada unidade dispõe de cinco membros, a última eleição já contemplou 60 vagas, além de 60 suplentes.
Assim, Fortaleza passará a contar com pelo menos um equipamento em cada Secretaria Executiva Regional. Atualmente, as oito unidades existentes em Fortaleza estão situadas nos bairros:
- Jacarecanga
- Mucuripe
- João XXIII
- Montese
- Conjunto Ceará
- Dias Macêdo
- São Gerardo
- Castelão
Apesar do número previsto, ele ainda é insuficiente, como aponta Carla Moura, assessora técnica em orçamento do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca): a cidade deveria dispor de, no mínimo, 24 unidades. Uma a cada 100 mil habitantes, como preconiza a Resolução nº 170/2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
“Infelizmente, eles ainda não conseguem dar conta e atender a todas as ocorrências”, avalia. Além disso, Carla aponta que os conselheiros precisam estar preparados para deficiências na rede socioassistencial - como Creas, Cras e Caps -, que também “está sobrecarregada”. “Mesmo com conselheiros atuantes, que corram atrás, ainda temos muitas barreiras”.
Comprometimento dos conselheiros
As duas especialistas consultadas pela reportagem revelaram a apreensão da rede de defesa com a eleição, em todo o Brasil, de conselheiros tutelares vinculados a questões político-partidárias, igrejas e até mesmo organizações criminosas.
“Muita gente que entrou não tem histórico de luta na garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Há o risco de que, em vez de ser salvaguarda, vire mais um agente violador”, alerta Mônica Sillan.
O conservadorismo também preocupa Carla Moura, do Cedeca: “essas questões podem influenciar como o caso vai ser encaminhado e tratado, principalmente quando a gente fala, por exemplo, de estupro, de aborto legal, de conflitos territoriais envolvendo facções”.
Raimundo Gomes de Matos reforça que o trabalho e o desempenho dos Conselhos Tutelares são fiscalizados pelo Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), que também inspeciona diversos itens constantes em resoluções específicas e leis especiais, a infraestrutura dos imóveis e o material disponibilizado.
Além disso, a Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci) monitora frequência e necessidades específicas dos representantes, uma vez que toda essa estrutura é custeada com recursos municipais. “Eles precisam ser os guardiões da criança e do adolescente”, ressalta o presidente do Comdica.