Estresse tóxico: racismo afeta a saúde mental de crianças e efeito pode ser confundido com timidez

A violência cotidiana causa dificuldade de interação e prejuízos ao desenvolvimento, levando à necessidade de acolhimento

Gestos racistas são disfarçados de “brincadeiras”, mas machucam crianças negras e indígenas, podendo causar um dano à saúde mental: o estresse tóxico. Esse termo define a sensação de que algo ruim pode acontecer a qualquer momento – um alerta de perigo constante na mente de quem ainda não tem ferramentas para enfrentá-lo.

Um dos efeitos disso é a retração, quase como uma autodefesa, geralmente confundida com timidez na primeira infância, como avaliam os especialistas na área. Além disso, o quadro potencialmente prejudica a formação emocional e cognitiva, dificultando interações sociais ou até levando a casos de ansiedade.

O estresse tóxico acontece quando uma criança vivencia adversidades por um longo período sem suporte. Isso pode prejudicar o desenvolvimento saudável do cérebro e de outros sistemas do corpo

A definição foi feita na publicação "Racismo, Educação Infantil e Desenvolvimento na Primeira Infância", do Núcleo Ciência Pela Infância, em 2021.

Maíra Souza, oficial da primeira infância do Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef), contextualiza que é na infância quando se começa a entender sobre as características diferentes entre si.

“Mas essas diferenças também são hierarquias. O cabelo liso é o 'bonito e desejável' e isso serve para o nariz, boca… É algo muito sutil”, frisa sobre a importância de fortalecer a autoestima para a geração de um adulto saudável.

Sendo o racismo presente em diversos ambientes sociais e a escola estando entre os principais espaços de encontro das crianças, é preciso promover a primeira infância antirracista. “Estamos aqui séculos depois pensando em formas de quebrar esse conceito que está presente nas estruturas de poder e tomada de decisão", completa.

O racismo é uma forma de violência e promotor do estresse tóxico, aquela sensação de que a qualquer momento algo ruim pode acontecer e isso é nocivo para o desenvolvimento emocional
Maíra Souza
Oficial da primeira infância do Unicef

Aldemar Costa, psicólogo social e doutorando na área, pesquisador de temáticas envolvendo juventude, violência e raça, acrescenta que alguns estudos apontam também prejuízos para áreas do cérebro.

“São experiências de violência constante que as crianças vão enfrentar e elas não tem tantos mecanismos para lidar com isso”, frisa.

O médico psiquiatra Adalberto Barreto, colunista do Diário do Nordeste, observa que situações estressoras dentro de casa também levam ao estresse tóxico. "O clima familiar marcado por ameaças, medo, ciúmes, críticas e falta de apoio entre os membros, vai gerando um ambiente de insegurança e ansiedade", pontua.

"Quando além desses contextos desestruturantes ocorre uma vulnerabilidade social com crianças negras ou indígenas a situação fica mais dramática, porque tem os preconceitos que comprometem o maior patrimônio de uma pessoa: a confiança em si".

O Observatório da Saúde da Criança e do Adolescente, da Universidade Federal do Minas Gerais, lista alguns sintomas e sinais ligados ao estresse tóxico em crianças:

  • Irritabilidade
  • Distúrbios do sono
  • Falta de equilíbrio
  • Queda da imunidade e mudança brusca de comportamento
  • Queda no desempenho escolar (médio prazo e longo prazo)
  • Aparecimento de transtornos comportamentais, como ansiedade e a depressão (médio prazo e longo prazo)

Manifestações do estresse tóxico

Ao vivenciar uma situação de racismo, as crianças – ainda no processo de formação do repertório para dar significado ao mundo – podem acumular diversos prejuízos sem entender o motivo.

“Um dos principais efeitos do racismo é afastar a criança do convívio social, à medida que ao enfrentar essa violência precisa se afastar quase como um mecanismo de defesa. A criança pode ter dificuldade de interação social e isso vai ter repercussões sobre o seu desenvolvimento”, analisa.

Torna-se um adulto inseguro e que não se sente pertencente a grupos sociais são exemplos disso. “Outra questão diz respeito às perspectivas emocionais: esses efeitos da violência constante também podem gerar consequências psicológicas”, acrescenta Aldemar.

Quando o estresse tóxico acontece na primeira infância, período até os seis anos, pode ter consequências mais sérias com alterações cerebrais e psíquicas profundas por toda a vida, como analisa Adalberto 

"O cortisol (hormônio que ajuda o corpo a lidar com o estresse) fica num nível mais baixo devido à constante ativação na infância e, quando adulto, acabam não reagindo bem aos desafios, mostrando uma resposta inadequada", completa.

O psiquiatra explica que as situações estressoras podem marcar uma pessoa ainda recém nascida. Ele lembra que a crença popular de deixar o bebê chorando para que se "resolva" sozinho é um grande equívoco.

"Essas crianças que choram a noite toda com fome ou frio sem os pais passam por um mal trato terrível, isso gera uma toxicidade nessa relação e a criança não se sente amada, reconhecida ou valorizada. Isso vai repercutir no futuro, sendo crianças inseguras ou tendo até problemas de depressão", conclui.

O que é possível fazer

Ainda há um cenário em que as situações racistas são tratadas como “mimimi” e, apesar do avanço, a questão precisa ser melhor debatida, como considera o psicólogo Aldemar. “Essa dificuldade de falar sobre o racismo diz muito sobre a forma de enfrentar isso”, conclui.

“É entender que isso é um problema de saúde pública e um fenômeno social, não tratar como casos isolados ou um problema individual, mas é estrutural e todos nós temos que nos empenhar no debate em relação a isso”.

Aldemar propõe que os professores precisam ficar atentos para situações de racismo e “acolher a experiência da criança de modo a ouvir e tentar encontrar caminhos para a solução do caso específico”, detalha.

Os pais e os adultos que acompanham essa criança é importante não só acolher, escutar de forma afetiva, mas também caminhar junto e reforçar para as crianças que o problema não está nelas
Aldemar Costa
Psicólogo social

Para Adalberto, frisa esse aspecto como importante para evidenciar aos pequenos qual o lugar deles na transformação do mundo.

“É muito importante tratar as crianças com carinho, às vezes elas precisam apenas se sentir cuidadas e seguras, precisamos abraçar, dar um cafuné, conversar com voz baixa e ter paciência para que ela fique tranquila”, completa.

Também é importante ouvi-la, deixar desabafar e colocar para fora as emoções, raivas e medos. O período mais crítico acontece até os dois anos de idade, que é uma fase muito importante e precisamos estar atentos
Adalberto Barreto
Médico psiquiatra

Fortalecimento das crianças

Existem exemplos inspiradores de fortalecimento da  infância, passando pela temática racial, em Fortaleza. O “Coletivo Invenções das Crianças de Nova Canudos”, no Canindezinho, atua com público na faixa etária de oito a 16 anos e segue nessa perspectiva.

Atualmente, cerca de 20 crianças atuam de forma mais ativa, mas o projeto permite a participação de qualquer um que tenha interesse, sem a necessidade de inscrição prévia.

A iniciativa é apoiada pelo Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violências e Produção de Subjetividades (Vieses), do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), desde 2019.

"O Invenções tem se constituído como lugar potente, de fortalecimento das crianças, como lugar de referências e cuidado, que repercutem na construção de contranarrativas, antirracistas, não adultocêntricas, afetivas, cidadãs", avalia Érica Atem, coordenadora do "Maquinarias: infâncias em invenção", atuante no  projeto.

As relações étnico-raciais e o enfrentamento do racismo são trabalhos interseccionalmente às questões de classe social (pobreza), geração, gênero, sexualidade, território e pautados pela escuta das situações cotidianas presentes nas vidas dessas crianças e adolescentes e dos que lhes interessa conversar.
Érica Atem
Coordenadora

As atividades são quinzenais, aos sábados, e acontecem no Centro de Cidadania e Valorização Humana (CCVH). São feitas ações de brincadeiras ao ar livre e algumas ações dirigidas.

"É feito por uma escuta atenta das crianças e suas vivências, tecendo cuidadosamente processos de singularização e coletivos, de modo que o projeto se mantenha como referência onde possam tratar questões pertinente às suas vidas, respeitando suas particularidades e contextos", completa Érica.

Em uma das atividades com a pauta racial foi lido conjuntamente o livro "Amoras", publicado pelo artista Emicida em 2018, com uma roda de conversa sobre o tema. "Ao final da contação, as extensionistas levaram imagens de personagens, heróis e heroínas negras/os de histórias em quadrinhos, desenhos animados, filmes e realizaram um quizz em torno de quem conheciam e gostavam".

O vínculo e a confiança são fundamentais para uma relação honesta com crianças e adolescentes, como analisa a coordenadora. "Assuntos complexos, pois trazem a dimensão da conivência social e da construção de mundos possíveis, precisam de elaboração e diferentes formas de expressão", conclui.

Onde buscar ajuda

Caso você esteja se sentindo sozinho, triste, angustiado, ansioso ou tendo sinais e sentimentos relacionados a suicídio, procure ajuda especializada em sua cidade. É possível encontrar apoio em instituições como o Centro de Valorização da Vida (CVV) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) (veja a relação completa das unidades de Fortaleza).

• Postos de saúde: as unidades são portas de entrada para obter ajuda especializada, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

• Centro de Valorização da Vida – CVV
Atendimento 24h 
Contatos: 188 ou chat pelo site https://www.cvv.org.br
 
• Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE)
Contato: 193 
Endereço: Núcleo de Busca e Salvamento Av. Presidente Castelo Branco, 1000 – Moura Brasil – Fortaleza-CE
 
• Hospital de Saúde Mental de Messejana
Contatos: (85) 3101.4348 | www.hsmm.ce.gov.br 
Endereço: Rua Vicente Nobre Macêdo, s/n – Messejana – Fortaleza/CE
 
• Programa de Apoio à Vida – PRAVIDA/UFC
Contatos: (85) 3366.8149 / 98400.5672 | contato.pravida@gmail.com
Endereço: Rua Capitão Francisco Pedro, 1290 – Rodolfo Teófilo – Fortaleza/CE

 • Instituto Bia Dote
Contatos: (85) 3264.2992 / 99842.0403 | contato@institutobiadote.org.br / institutobiadote@gmail.com | www.institutobiadote.org.br 
Endereço: Av. Barão de Studart, 2360 – Sala 1106 – Aldeota – Fortaleza/CE