Carniceiros, pernas de pau, metidos, arruaceiros. É extensa a lista de adjetivos pejorativos para descrever o povo Tapeba, etnia indígena que reside em Caucaia desde a colonização do segundo maior município do Ceará. Porém, batalhando contra a invisibilização e a violência, eles foram pioneiros na luta indígena no Estado e aguardam a demarcação final de suas terras há quase 40 anos.
Esta é a quarta reportagem da série "Originários", que ouviu demandas e dilemas dos 4 povos indígenas da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) e presenciou danças e rituais que eles tentam conservar para as próximas gerações.
A área Tapeba, de 5.294 hectares, foi identificada oficialmente em 1986, durante um processo histórico de mobilização iniciado naquela década e impulsionado pelo então arcebispo de Fortaleza, Dom Aloísio Lorscheider.
Naquele período, os tapebas decidiram se erguer contra o significado do próprio nome. No original, eram os “itapebas”, ou “índios que se escondiam atrás das pedras”, como conta a professora, artesã e mobilizadora cultural Ângela Tapeba.
Essa história é narrada à reportagem no quintal de Isabel Francisca, a Vó Isabel Tapeba, mestra da cultura de Caucaia e tronco velho da comunidade indígena da Jandaiguaba. Ela mesma é de um tempo em que seu povo precisava se esconder para não ser massacrado.
“Os índios vieram fugidos, não tinha como viver no meio dos senhores, dos brancos. Saíam muito daqui pras pedras e grutas de Maranguape, em busca de abrigo e alimentação. Muitos não voltavam. Cresceu um povo todo subjugado, como temos medo ainda hoje. Foi uma vida muito difícil”, relembra.
A presença indígena no município só deixou de ser ignorada no início da década de 1980, quando a Arquidiocese de Fortaleza deu atenção à questão Tapeba, cercada por conflitos fundiários. À época, um dos posseiros que reivindicava uma fazenda dentro do território identificado declarou que a área pretendida era uma “fantasia”, e que Dom Aloísio pretendia recriar, nos mangues de Caucaia, “um Brasil pré-Cabralino”.
Após anos de obstáculos jurídicos e administrativos, sobretudo contra fazendeiros da região, a posse permanente da Terra Indígena Tapeba foi declarada pelo Ministério da Justiça em setembro de 2017. De lá para cá, contudo, não houve novas movimentações no processo.
Por isso, eles temem que a demora na demarcação ameace a ocupação do território por terceiros, já que Caucaia vivencia um crescimento populacional com instalação de novos loteamentos, empresas e indústrias - além de invasões irregulares.
“Antes, Caucaia era conhecida como ‘mata queimada’, depois virou Soure, e então Caucaia. Os índios sempre estavam aqui, só mudaram de canto. Iam para as praias, para o lado do sertão, mas sempre na Caucaia”, complementa Sônia dos Índios, agente de saúde e liderança Tapeba na Jandaiguaba.
Ao todo, hoje, há cerca de 8 mil indígenas da etnia distribuídos em 19 aldeias.
O Diário do Nordeste procurou a Funai, desde o dia 9 de fevereiro, para comentar como está a demarcação dos povos no Ceará e que diagnóstico tem da necessidade de saúde, saneamento e educação dessas populações. Porém, não houve retorno até esta publicação.
Mesmo sem atribuição direta sobre a demarcação dos territórios, a Secretaria Estadual dos Povos Indígenas (Sepince) declarou que “está comprometida com a aceleração do processo” para os povos cearenses. “Para essa demanda avançar, a Secretaria estará em constante diálogo com os povos indígenas do Ceará, Funai, Ministério dos Povos Indígenas e órgãos competentes”, disse em nota.
Avanços e necessidades
Salete Tapeba, representante da aldeia Lagoa dos Tapebas, reconhece avanços no fornecimento de serviços públicos. Quando era criança, por exemplo, ser indígena em uma escola era motivo de piadas e ataques. Foi daí que as lideranças decidiram organizar o ensino próprio, mesmo sem condições específicas para isso.
“Teve escola que começou como uma casa de taipa. Ninguém tinha ajuda de ninguém, a gente precisava sair pra buscar ajuda. Os professores que começaram não sabiam nem escrever direito porque não tinham formação. Foi uma necessidade resolver essa situação para nossos filhos, netos, bisnetos”, elenca.
Hoje, já existem Tapebas com ensino superior nas áreas do Direito, Assistência Social, Nutrição e Enfermagem, por exemplo.
Em nota, a Prefeitura de Caucaia informou que o município conta com 7 escolas de educação indígena, que atende a Tapebas e Anacés, com cerca de 450 alunos matriculados. “Para preservar a cultura e garantir o ensino a esses povos, a Secretaria Municipal de Educação (SME), possui um setor dentro da Diretoria Pedagógica com representantes das etnias”, complementa.
Sônia dos Índios percebe que o movimento também avançou com a instalação de unidades básicas de saúde, e pode melhorar com a nomeação do advogado Weibe Tapeba para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde.
Nessa área, a Prefeitura declarou que, embora a Sesai seja o órgão responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) distribui insumos (como vacinas e medicamentos) e mobiliza profissionais para atuação e suporte nas áreas indígenas.
Para Sônia, as principais necessidades dos Tapebas atualmente são um Centro de Referência da Assistência Social (Cras) próprio e a sonhada demarcação.
Mescla cultural
Os Tapebas são fruto da mescla de quatro povos originários: jucás, potiguaras, kariris e tremembés. Além disso, tiveram uma forte miscigenação com o povo negro e quilombolas. Por isso, em várias ocasiões, são confrontados sobre a própria identidade, algo que Ângela Tabela critica.
“Morro dizendo que sou Tapeba. A partir do momento em que eu busco a originalidade de um povo só, eu não sou Tapeba, mas desde o início da luta, a gente se afirma assim”, ressalta a professora.
Mesmo com o autorreconhecimento, outra batalha silenciosa dentro do próprio povo busca manter viva a cultura diante das comodidades do mundo moderno. O interesse por cultivar um roçado vem caindo, os vizinhos já não compartilham ingredientes no dia a dia, as manifestações culturais penam para atrair participantes.
Um dos pontos de resistência é o Centro Cultural Canto da Jandaia, construído há cerca de 2 anos com apoio da Lei Aldir Blanc. Lá ocorrem aulas de artesanato e ensaios de carimbó e da Paixão de Cristo, encenada pela comunidade desde o fim dos anos 1980.
A dança do toré, manifestada rotineiramente nas escolas, também é percebida como um eixo de preservação da memória indígena. “No toré, quando a gente pede força, tudo se resolve. Todas as coisas que a gente botou o toré na frente, a gente não saiu sem resposta”, destaca Sônia dos Índios.
O movimento é tão sério que a gente pede orientação espiritual, que os encantados nos protejam. Muitos já tombaram na luta indígena acreditando, e são esses que quando a gente sai, pede força.
Tradicionalmente, os Tapebas celebram sua própria cultura entre os dias 18 e 20 de outubro. Nesses três dias, ocorrem atividades esportivas, como corrida com a tora e o cabo de força, a Feira Cultural e a Festa da Carnaúba, considerada sagrada por esse povo ao fornecer abrigo, remédio e material para artesanato.
Os eventos são abertos ao público e tentam sensibilizar os não-indígenas sobre o respeito à identidade indígena. Tudo ocorre no Terreiro Sagrado dos Pau-Branco, na Lagoa dos Tapebas, onde há grande concentração dessa planta característica da caatinga.
Resgate de valores
Seguindo o crescimento de Caucaia nas últimas décadas, os Tapebas estão intimamente ligados ao cotidiano urbano da cidade. O temor das lideranças é que a essência do ser indígena se perca de vez.
“Mas a gente pode recapturar. Ela só tá adormecida. Se nós estamos vivos, ela não morreu”, crê Ângela. Um dos esforços dela e de membros da comunidade é resgatar sua língua nativa a partir do estudo do nheengatu, ou Língua Geral Amazônica (LGA), ameaçada de extinção.
A transição do modo de vida nômade, baseado na caça e agricultura de subsistência, para fixação territorial com a evolução tecnológica, é o maior desafio na manutenção das tradições Tapebas, para a artesã. “A liberdade é nossa maior força”, resume.
“Não temos mais onde colher, tudo é industrializado. Temos que aceitar, mas não deixar morrer a parte indígena. Nunca tivemos paz por sermos índios, não foi fácil a gente se adaptar a viver essa vida”, assume Vó Isabel.
Antes de irmos embora, a matriarca de cabelos brancos faz uma oração de despedida. De olhos fechados, agradece ao Pai Tupã e à Mãe Lagoa pelo momento de troca. Como ela mesma diz, é uma tronco velho que sustenta os galhos e os novos ramos. Juntos, esperam dar frutos.