O Oceano Atlântico une o nordeste brasileiro ao continente africano, mas neste elo o descarte irregular de lixo é um motivo de preocupação. Isso porque um estudo produzido no Ceará aponta que 78,5% do lixo plástico recolhido em Jericoacoara, Praia do Futuro e Porto das Dunas têm como origem países da África. Além do prejuízo para a vida marinha, as tampas de garrafa e as embalagens podem transportar patógenos causadores de doenças.
A pesquisa "Uma ameaça transcontinental: lixo plástico da África invade a costa do Brasil" foi produzida no Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e publicada pela revista internacional Science of the Total Environment, no último mês.
O artigo é um produto do projeto Detetives do Plástico financiado pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Além do lixo que cruza o oceano, há 15,7% de poluição com origem brasileira e 5,8% de nações como Índia, Emirados Árabes Unidos, China, Itália e Alemanha. Para o estudo, foram feitas 11 análises ao todo nas praias onde foram recolhidas amostras.
Os cientistas percorreram um trecho paralelo à linha da praia para coletar o material. Ao todo, o grupo recolheu 1.062 itens plásticos com peso de 9,7 kg, nas três praias estudadas.
A poluição plástica corresponde a produtos de 31 marcas de sete países africanos, sendo 90% originário da República Democrática do Congo. A análise feita por meio de simulações indica que o Rio do Congo é a principal fonte do lixo plástico encontrado nas praias brasileiras.
A ideia da pesquisa surgiu em novembro de 2022, durante atividades de campo realizadas pela comunidade universitária, como explica Tommaso Giarrizzo, professor doutor visitante sênior no Labomar e um dos responsáveis pelo estudo.
“Me deparei com tampinhas de garrafas de cores incomuns e plásticos com logotipos exóticos, que não faziam referência a produtos comercializados no Brasil. Isso despertou minha curiosidade”
Ao observar mais de perto, percebi que havia uma quantidade significativa de plásticos estrangeiros nas praias, mais do que os plásticos brasileiros. Surpreendido por essa descoberta, organizei a equipe para realizar coletas sistemáticas em três praias do Ceará: Jericoacoara, Porto das Dunas e Praia do Futuro.
Esses pontos de praia foram definidos ao considerar áreas de conservação, regiões turísticas e proximidade com o movimento urbano. “A escolha desses locais visou captar diferentes níveis de impacto antrópico, permitindo uma comparação mais abrangente da poluição plástica ao longo do litoral do estado”, acrescenta Tommaso.
Após a identificação das amostras, foi utilizado o modelo OpenDrift para simular as rotas dos plásticos por meio das correntes oceânicas, rastreando o caminho dos resíduos até o litoral do Ceará. “Essa abordagem combinada permitiu identificar a predominância de plásticos estrangeiros, principalmente da África, nas praias estudadas”, conclui Tommaso.
Como acontece o deslocamento?
Para identificar as possíveis rotas e a origem dos itens plásticos que chegaram à costa do Ceará, em 2022, os pesquisadores avaliaram a dispersão do lixo plástico em direção ao Estado por meio de um modelo que analisa os oceanos.
“Esses resíduos podem ser transportados por rotas comerciais marítimas e correntes oceânicas, que movem grandes quantidades de lixo plástico por longas distâncias. Isso demonstra que a poluição plástica que atinge o litoral brasileiro é resultado de um problema global”, alerta.
Além dos rios que transportam plástico para o mar, outros fatores, como o descarte inadequado de lixo em áreas urbanas, atividades pesqueiras e a poluição associada ao turismo e à navegação, também contribuem para o acúmulo de plásticos no oceano, como explica.
A simulação numérica realizada no estudo demonstrou que os plásticos provenientes de países africanos, em especial da República Democrática do Congo foram carregados pelas correntes do Oceano Atlântico Sul e depositados no litoral brasileiro.
Tommaso contextualiza que a República Democrática do Congo é o quarto país mais populoso do continente africano, com mais de 100 milhões de habitantes. Por lá, há despejo significativo de plásticos no oceano, como aponta o especialista.
“O Rio Congo transporta grandes quantidades de resíduos plásticos descartados de maneira inadequada, principalmente em áreas urbanas, que acabam sendo levados pelas correntes marítimas”, acrescenta.
Risco da poluição
O plástico no ambiente causa diversos prejuízos para a vida marinha. Entre eles, quando há a fragmentação do material, o microplástico contamina peixes, ostras e moluscos, por exemplo, que são consumidos por seres humanos e ameaça a saúde.
Além disso, existe risco de transmissão de patógenos por meio dos plásticos que chegam às praias do Estado.
“Os resíduos plásticos, especialmente aqueles que percorrem longas distâncias através das correntes oceânicas, podem atuar como vetores de organismos nocivos, incluindo bactérias, vírus e outros patógenos”, avalia.
Esses plásticos podem servir de superfície para o transporte de microrganismos marinhos e de ambientes costeiros, incluindo espécies invasoras e patógenos associados à saúde humana e à fauna marinha.
De acordo com o professor, alguns estudos demonstraram que plásticos no oceano criam ambientes favoráveis para o desenvolvimento de biofilmes (comunidades de bactérias), que podem abrigar patógenos.
“Dependendo da origem e da condição dos plásticos que chegam, eles podem carregar organismos que não são nativos da nossa região, aumentando os riscos de contaminação ambiental e impacto na saúde pública”, ressalta.
Necessidade de monitoramento
Esse contexto é mais uma evidência da poluição plástica generalizada no Oceano Atlântico e os pesquisadores envolvidos no estudo apontam a necessidade de programas de monitoramento e medidas regulatórias.
“Precisamos de um sistema de monitoramento regular nas praias, com coletas de dados mensais ou sazonais para acompanhar o acúmulo de resíduos plásticos e identificar as principais fontes e períodos críticos”, completa Tommaso.
O acompanhamento é defendido para entender o comportamento dos plásticos, tanto locais quanto estrangeiros, e a prever os momentos em que o lixo é mais intensamente transportado para o litoral. Além disso, o problema precisa ser enfrentado como é: global.
“Um tratado internacional, como o que está sendo proposto pela ONU, pode estabelecer diretrizes e compromissos globais para reduzir a produção de plásticos, melhorar a gestão de resíduos e responsabilizar as nações pela poluição que afeta ecossistemas distantes”, pontua.
O Diário do Nordeste entrou em contato com a Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) para entender como é feito o monitoramento da qualidade da água e se há alguma ação para evitar os danos causados pela poluição. Não houve resposta até a publicação desta reportagem.