Crianças e adolescentes são vítimas de 7 em cada 10 estupros cometidos no CE entre 2018 e 2022

Ocorreram 3.719 crimes contra jovens de até 19 anos ao longo dos últimos 5 anos. Os dados são do Sistema de Informação de Agravos de Notificação, do Ministério da Saúde

Em média, 743 crianças e adolescentes foram vítimas de estupro no Ceará a cada ano entre 2018 e 2022. Em um cenário que espelha o que ocorre no restante do Brasil, a maior parte das vítimas desse crime ao longo dos últimos cinco anos foram meninas e a residência onde moram foi o lugar mais frequente onde esses jovens — na maioria negros — foram violentados.

É o que mostram dados levantados pelo Diário do Nordeste a partir do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde (MS), relativos aos anos de 2018 a 2022. As informações apontam que houve 5.279 estupros notificados nesse período no Estado. Em 70% dos casos, as vítimas foram crianças e adolescentes de até 19 anos.

Nessa faixa etária, o levantamento aponta que a maior parte das 3.719 vítimas tem entre 10 e 14 anos (50%), é preta/parda (84%), é do sexo feminino (93%) e foi violentada em casa (68%).

Mas a realidade pode ser ainda mais preocupante, já que, além do Sistema federal ser passível de subnotificação, questões sociais também podem levar ao silenciamento das vítimas. Ana Cristina Lima, psicóloga do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) do Ceará, destaca que, em grande parte dos casos, os agressores de crianças e adolescente fazem parte do núcleo intrafamiliar das vítimas e que, com isso, as relações de poder se sobrepõem aos vínculos de cuidado, dando lugar às violações — e consequentemente às subnotificações.

Em muitos desses casos, o agressor, diante do status de provedor do lar, das leis sociais que o colocam em lugar de poder, garante que suas ações violentas não sejam denunciadas e a impunidade seja garantia, perpetuando o ciclo de violência sobre os corpos de crianças e adolescentes.
Ana Cristina Lima
Psicóloga do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) do Ceará

Apenas neste mês de outubro de 2023, o Diário do Nordeste noticiou três casos relacionados a essa problemática. Em um deles, a guarda de um menino de seis anos foi concedida ao pai, mesmo ele sendo réu no Judiciário por estuprar a criança. Na sexta-feira (20), a juíza da 12ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) ordenou que o menino fosse entregue pelo pai e passe a viver com a avó materna.

Ela diz estar há mais de 100 dias sem ver o menino e alega que a decisão se deve ao “status” do pai, um coronel aposentado da Polícia Militar do Ceará (PMCE) e irmão de juiz. A primeira suspeita de que o filho estava sendo abusado sexualmente ocorreu em 2021, quando uma dentista indicou feridas na parte superior da boca que eram compatíveis com sexo oral.

No mesmo dia 20, um homem de 49 anos foi preso em Amontada, no interior do Ceará, sob suspeita de estuprar uma menina de seis anos. O crime ocorreu no dia 7 de outubro e foi gravado pela própria vítima. O vídeo foi compartilhado pela menina nos stories do WhatsApp do homem, o que fez conhecidos dele o denunciarem à Polícia Civil.

O outro caso reportado foi a condenação de um homem por ter estuprado a própria filha, em casa, em 2013. Após passar quase 10 anos foragido, o acusado foi preso apenas em junho deste ano, em Fortaleza. À época do crime, a vítima tinha 15 anos. O Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Maracanaú condenou o pai a 11 anos e três meses de prisão.

Notificação compulsória

Provenientes do painel de informações sobre violência interpessoal ou autoprovocada, os dados coletados pela reportagem foram registrados por profissionais de saúde. Parte do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), as unidades de saúde são obrigadas a notificar casos de violência contra crianças e adolescentes ao Conselho Tutelar, à delegacia especializada e aos demais atores que sejam responsáveis pela proteção dessas pessoas.

Essa notificação às autoridades é obrigatória em casos de violência contra menores de 18 anos e pessoas com deficiência mental ou física, explica Ligia Cardieri, socióloga, especialista em Saúde Coletiva e Epidemiologia e integrante da coordenação da Rede Feminista de Saúde. Nos demais casos, ela aponta que a ficha é anônima e não pode ser compartilhada com a polícia.

Se for uma pessoa adulta em condições de julgamento de si mesma — uma mulher, um homem, um adolescente maior de 18 anos —, para denunciar o estuprador e fazer o processo andar na justiça, é preciso ir à delegacia de polícia. Mas na saúde é o lugar de a gente ter uma ficha em que possa falar tudo, em que possa registrar tudo, para a gente conhecer o problema.
Ligia Cardieri
Socióloga, especialista em Saúde Coletiva e Epidemiologia e integrante da coordenação da Rede Feminista de Saúde

Muitas vezes, os profissionais de saúde são os primeiros a atender casos de violência sexual, quando eles resultam em danos perceptíveis. Com a notificação da ocorrência, têm-se em mãos dados importantes e necessários para que as vítimas tenham o acesso aos serviços de saúde e de assistência social garantidos, explica Ana Cristina Lima.

“Em consequência, prefeitura e estado podem garantir que o serviço seja efetivo e que os profissionais que realizem os atendimentos às crianças e aos adolescentes sejam especializados para atender o perfil”, complementa a psicóloga.

Mas a denúncia de alguma violação de direitos também pode ser feita por outros caminhos e por qualquer pessoa que esteja ciente da ocorrência, seja familiar da vítima ou não.

Criado a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Conselho Tutelar, por exemplo, é responsável por garantir a proteção e encaminhar os casos de violação de direitos para os demais atores do Sistema de Garantia de Direitos. A existência de delegacias de combate à exploração de crianças e adolescentes também é importante para o processo de restituição de diretos, aponta a psicóloga. “É a partir dela que o processo de investigação é efetivado para que os agressores sejam responsabilizados”, comenta. Ana Cristina Lima enfatiza que a denúncia da violência sexual e das demais violências é “urgente” que o ciclo de violação de direitos seja quebrado.

Prioridade absoluta, eles precisam ter seu direito ao desenvolvimento, físico e mental, saudável e longe de situações que tragam traumas e que podem causar danos irreversíveis. Para que a denúncia seja tratada como parte necessária da restituição de direitos, a população precisa compreender melhor quais são esses direitos, bem como os deveres dos adultos em relação à proteção das crianças e dos adolescentes.
Ana Cristina Lima
Psicóloga do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) do Ceará

Estupro presumido

Para investigar o estupro nessa população, a socióloga Ligia Cardieri explora também outro banco de dados: o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC). Ela busca, em meio às informações obtidas a partir das Declarações de Nascidos Vivos (DN) nos estabelecimentos de saúde e nos cartórios, o total de mães que têm entre 10 e 14 anos.

Significa estupro de vulnerável. É comprovado, não tem discussão, não é suspeita de violência. Essa é a prova: um bebê nascer de uma menina de menos de 14 anos.
Ligia Cardieri
Socióloga, especialista em Saúde Coletiva e Epidemiologia e integrante da coordenação da Rede Feminista de Saúde

O estudo “Meninas Mães 2023” — que atualiza a análise da publicação original, feita para a década 2010-2019 — mostra que apenas no ano de 2021 (dados mais recentes utilizados na pesquisa) 960 meninas nessa faixa etária tiveram filhos vivos no Ceará. Em todo o País, mostra-se que as meninas negras também são a maioria entre as jovens que pariram um bebê nascido vivo em 2021: 75,5%. O Nordeste tem o maior percentual, de 86,1%.

Porém, a especialista aponta, no documento, um problema nos dados que se repete no levantamento feito pela reportagem: a falta de preenchimento do campo raça/cor. Em todo o Brasil, 2,6% dos registros do SINASC estão com o item ignorado ou não preenchido, mas por trás desse índice nacional estão estados indicadores mais elevados, como Paraíba (12,2%) e Ceará (9,1%).

A ausência do registro da informação sobre raça/cor é preocupante, pois compromete a precisão do cálculo de muitos indicadores essenciais na avaliação epidemiológica e que costumam revelar desigualdades, como as taxas de mortalidade infantil e materna que, conforme outros estudos, tendem a ser muito maiores entre mulheres negras em comparação às mulheres brancas.
Estuo Meninas Mães 2023

Ligia Cardieri explica que é necessário que as secretárias de saúde forneçam treinamento contínuo aos funcionários que preenchem essas informações para perguntarem qual a raça/cor com que a pessoa se identifica. “(O funcionário) não pode inventar. Precisamos perguntar pra pessoa, para a mãe dessa criança ou para o adolescente: ‘Como você se considera? Negro, pardo, branco?’ (...) Essa é a pergunta que tem que ser feita e precisa esperar a pessoa responder”, destaca.

Como identificar que algo está errado

Os primeiros sinais de que uma criança está necessitando de atenção é quando ocorrem mudanças de comportamento, afirma a psicóloga do Cedeca. É o caso de quando um jovem mais expansivo no dia a dia torna-se mais retraído ou vice-versa. “É de grande importância que os responsáveis por crianças e adolescentes participem da rotina dos mesmos”, afirma.

A escola também é um espaço importante para esse tipo de denúncia, principalmente quando a violência ocorre no núcleo intrafamiliar. Para quem é procurado pela criança ou pelo adolescente nesses casos, Ana Cristina Lima destaca a importância do acolhimento.

“Sem forçar a criança e/ou o adolescente durante a conversa, para evitar a revitimização, o encaminhamento para o equipamento de saúde especializado deve acontecer com urgência para que a profilaxia seja efetivada. Após os cuidados iniciais, os procedimentos administrativos precisam ser realizados: notificação ao Conselho Tutelar, bem como a denúncia nas delegacias especializadas”, orienta.