Como funciona o sistema que monitora violência ao redor de escolas e postos de saúde em Fortaleza

Recurso é parte de uma política que tem objetivo de garantir o acesso seguro da população a serviços públicos

Não poder ir à escola porque, ali perto, houve um tiroteio. Não conseguir consulta porque o posto de saúde acaba de ser assaltado. Não ser atendido na assistência social por não poder cruzar o bairro. As negações são exemplos cotidianos dos efeitos que a violência urbana gera em Fortaleza – e que uma nova lei municipal tenta, agora, reforçar o combate.

Por meio da Lei nº 11.312, sancionada em novembro, foi instituída na cidade a Política Municipal de Acesso Mais Seguro (AMS), uma metodologia “a ser aplicada em instituições, órgãos, setores e repartições públicas localizadas em regiões expostas a situações de violência armada”.

A AMS é, em resumo, um conjunto de práticas adotadas em Fortaleza desde 2018 para treinar os profissionais dos equipamentos públicos para lidar com situações violentas reais. Neste ano, a metodologia se tornou política pública por lei, o que deve permitir a ampliação.

“A implementação da AMS objetiva prevenir, reduzir e mitigar as consequências diretas e/ou indiretas aos agentes públicos e aos usuários quando expostos a contextos de violência armada, garantindo o acesso seguro aos serviços públicos ofertados no município”, expõe a lei.

A metodologia foi trazida a Fortaleza há 4 anos pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e implementada em quatro áreas: saúde, educação, juventude e assistência social. Regislany Morais, assessora local do programa no CICV, afirma que mais de 250 unidades públicas essenciais da Capital já estão treinadas e inseridas na AMS. 

“Uma vez treinadas, elas passam a identificar os incidentes de violência armada que possam impactar o acesso ao serviço ou levá-lo ao fechamento. As unidades desenvolvem protocolos para gerenciar as situações de crise e o estresse dos profissionais após as ocorrências”, explica.

Num tiroteio no entorno de uma unidade de saúde, por exemplo, como a organização interna pode fazer para diminuir riscos a usuários e profissionais? Com a AMS, eles vão saber adotar comportamentos mais seguros, direcionar os usuários, observar o melhor momento de sair com segurança. E conduzir o acolhimento que tem que ser dado posteriormente.
Regislany Morais
Assessora do AMS do CICV em Fortaleza

Além de lidar com os episódios de risco, os órgãos públicos têm de registrar os casos num Sistema de Notificação, especificando os detalhes do episódio violento, a localização e, principalmente, o nível de impacto que gerou no acesso ao serviço essencial.

A ferramenta, também oficializada por lei como política municipal, tem o objetivo de monitorar a frequência e mapear os territórios impactados, para que sejam adotadas políticas específicas de combate.

A reportagem solicitou à Prefeitura o relatório com os registros feitos até agora, mas a gestão informou que os dados são confidenciais.

Acesso à saúde

Em novembro, o Diário do Nordeste mostrou em reportagem a situação de famílias que não conseguem vacinar as crianças por terem o direito de ir e vir cerceado pelas facções criminosas, numa comunidade da periferia de Fortaleza.

Na ocasião, uma chefe de família do bairro Vila Velha afirmou que “não pode ‘passar’ até o posto”, uma vez que mora num território dominado por um grupo criminoso, mas a unidade de saúde fica em outro. Ela e as 4 netas estavam com a imunização atrasada.

26%
No primeiro semestre de 2021, a apropriação e utilização da metodologia Acesso Mais Seguro reduziu em 26% as horas de fechamento das unidades de saúde de Fortaleza e de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, onde também é aplicada.

Joana Nogueira, coordenadora executiva de Assuntos Institucionais da Prefeitura de Fortaleza, reforça que “a metodologia é para que o trabalhador se sinta mais seguro para lidar com a questão da violência real”, e não tem viés preventivo. Apesar disso, por meio do monitoramento das ocorrências é possível traçar ações nesse sentido.

“O gestor sabe qual é o posto de saúde que mais teve incidentes em 2021, por exemplo, e aí pode conversar com os órgãos de segurança e planejar o que fazer para dar mais segurança aos trabalhadores. Em vez do achismo, trabalhamos com casos reais”, frisa.

“O grande benefício pra população é o não fechamento dos serviços. Às vezes, por incapacidade dos profissionais, a escola e o posto de saúde eram fechados em situações de violência, por exemplo. A metodologia evita isso”, analisa Joana.

Violência territorial é mais grave

Outro serviço essencial impactado pela violência de forma constante é a educação. Nas escolas, então, a metodologia do Acesso Mais Seguro se torna crucial. Ao todo, 131 unidades já contam com a política, como contabiliza Dalila Saldanha, titular da SME.

O projeto piloto começou pelas escolas do Grande Bom Jardim, mas já foi implementado em bairros de todas as regiões da cidade, a exemplo dos bairros Jangurussu, Passaré, São Miguel, Granja Lisboa, Granja Portugal, Rodolfo Teófilo e Presidente Kennedy.

O CICV procurou Fortaleza motivado por indicadores de enfrentamento da violência. Temos uma plataforma por onde acompanhamos ameaças que ocorram no entorno da escola, até pra implementarmos outras políticas, como videomonitoramento e a intensificação da ronda escolar na área.
Dalila Saldanha
Secretária da Educação de Fortaleza
 

A secretária da Educação afirma que não há um grande número de ocorrências registradas, mas que a violência no território que cerca as escolas é a mais frequente. Além disso, invasões e assaltos à unidade escolar, danos ao patrimônio, agressão física e coerção de trabalhadores da educação figuram entre as notificações ao sistema.

“No relatório que temos com dados de julho até agora, a maior em todos os meses foi a violência no território. Apesar disso, a maioria das escolas foi classificada com risco médio. Nossa rede se conecta, então, na perspetiva de desenvolver estratégias integrais de gestão”, destaca Dalila.

As pessoas precisam ir ao posto de saúde, ao Cuca, à escola. Então essas notificações mais frequentes servem de subsídio pra que a gente defina áreas de maior atenção.
Dalila Saldanha
Secretária da Educação de Fortaleza

612
escolas formam a rede municipal de Fortaleza, atualmente. A meta é que todas recebam, até 2024, o treinamento para a metodologia do Acesso Mais Seguro.

O fato de a metodologia ter se tornado uma política pública por lei é fundamental para facilitar o processo de universalização, como avalia a titular da SME. “Não é plano de governo, não acaba quando a gestão acabar e nos deixa mais seguros ampliar investimentos em profissionais e equipamentos”, finaliza.

Prevenir, não remediar

Se de um lado a política de Acesso Mais Seguro treina profissionais para lidar com os episódios violentos, de outro é urgente que se trabalhe a prevenção – sobretudo no âmbito municipal, como destaca a psicóloga Daniele Negreiros, assessora técnica do Comitê de Prevenção e Combate à Violência na Assembleia Legislativa do Ceará.

“O município tem um papel fundamental na prevenção, porque é quem gere as políticas nos territórios. Uma das principais sugestões é a qualificação urbana dos territórios: a violência se instala onde há déficit do Estado, os lugares não ficam vazios”, ilustra.

Fortalecer acesso a lazer, à cidade sem restrições e a uma moradia digna é um grande pilar para sustentar uma estrutura de garantia de direitos a todos – sobretudo a crianças e adolescentes, grupos mais impactados pela violência.

O impacto pra crianças e adolescentes vem de todas as ordens: na socialização, no direito à cidade, já que ficam restritos a alguns quarteirões; impacto psicológico e ao desenvolvimento pessoal e da aprendizagem. É viver sob constante situação de medo.
Daniele Negreiros
Psicóloga

Aprender a lidar e se proteger diante dos riscos imediatos é importante, como avalia a psicóloga, mas os efeitos nocivos da violência se instalam a médio e longo prazos. 

“Todo o sentimento de insegurança, de medo, viver sob constante tensão vai criando condições de estresse cotidiano, levando à ansiedade, transtorno de pânico, medo de sair, restrição territorial e uma série de agravos na saúde. É preciso atentar a isso."