Com mudança do clima, casas e prédios do Ceará devem se preparar para futuro de altas temperaturas

Fortaleza registra temperaturas médias que chegam a 32°C. No entanto, esses valores podem ficar até 5ºC acima da média durante eventos cada vez mais constantes de ondas de calor, que oferecem desconforto térmico à população, tanto ao ar livre quanto dentro de casas e prédios sem refrigeração artificial. As edificações, aliás, precisam se reformular diante do cenário de emergência climática e de um futuro em que as altas temperaturas deverão se consolidar. 

Essa é a primeira reportagem da série “O Futuro é Verde”, especial do Diário do Nordeste que debate como as cidades precisam se adaptar às mudanças aceleradas do clima e como as respostas estão, em sua maioria, na valorização do ambiente natural. 

Um bom exemplo de adaptação é a sede do Sebrae Ceará, na Avenida Monsenhor Tabosa, em Fortaleza. Construído em 1998, ele passou por modernizações na última década para melhorar sua eficiência energética. Recebeu controle automático de iluminação e ar-condicionado e uma fachada anticalor (capaz de reduzir a insolação em até 54%). O pacote gera menor demanda de climatização e maior aproveitamento da iluminação natural.

Contudo, medidas assim não deveriam ser pontuais. Segundo o Plano Local de Ação Climática, elaborado pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Seuma) em 2020, existe uma tendência no aumento da temperatura média na cidade que pode piorar a qualidade de vida da população e gerar danos aos ecossistemas.

O levantamento aponta que os bairros mais próximos ao litoral - como Cristo Redentor, Pirambu, Cais do Porto, Vicente Pinzón e Praia do Futuro - são os mais expostos ao aumento da temperatura, visto que áreas naturais foram substituídas por infraestrutura e edificações e houve redução na quantidade de áreas verdes.

Já a população em maior risco de vulnerabilidade está localizada no setor oeste da cidade - incluindo Bonsucesso, Couto Fernandes, Bela Vista e Demócrito Rocha -, “pois são as áreas de maior vulnerabilidade socioeconômica, alta densidade populacional e baixo Índice de Desenvolvimento Humano”.

Márcia Cavalcante, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora do Laboratório de Crítica em Arquitetura, Urbanismo e Urbanização (LoCAU), entende que a adaptação das residências às mudanças climáticas ainda engatinha. Para ela, o respeito às características ambientais próprias do Ceará nos projetos era maior nos anos 1970 - ou seja, há mais de 50 anos.

“Antes, a gente via muitas jardineiras, varandas e edifícios sobre pilotis (conjunto de colunas), ‘soltos’ do chão, para que o vento passasse no nível do pedestre”, lembra.  Hoje, ela percebe um movimento contrário.

Depois que as pessoas habitam os edifícios, elas estão fechando com cortina de vidro, eliminando as varandas e botando ar-condicionado. São várias as causas, mas principalmente pela diminuição da área das unidades habitacionais. Elas querem mais espaço, o ar-condicionado está mais acessível em termos de preço e você simplesmente elimina as varandas para ganhar mais sala.
Márcia Cavalcante
Arquiteta e professora da UFC

O coordenador do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Regional do Cariri (Urca), Bruno Barbosa de Oliveira, ressalta que a discussão até existe, mas uma grande parcela da população ainda carece de recursos e orientações básicas sobre como amenizar os efeitos do calor. Por isso, desde 2008, a Lei de Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (Athis) tenta proporcionar apoio gratuito a projetos habitacionais.

Segundo o professor, o crescimento do número de cursos de Arquitetura e Urbanismo no Estado contribui para ampliar a discussão e divulgar técnicas de aumento do conforto térmico, tais como:

  • orientação correta das edificações para aproveitar a ventilação natural;
  • uso de materiais e métodos construtivos de melhor isolamento térmico;
  • implementação de ventilação cruzada (entrada e saída natural do vento por aberturas);
  • utilização de paredes duplas;
  • incorporação de elementos como brises-soleil (lâminas utilizadas para impedir a incidência direta de radiação solar nos interiores);
  • uso de cores claras nas fachadas;
  • aumento da arborização urbana.

“Essas soluções não apenas melhoram o conforto térmico, mas também contribuem para a eficiência energética, reduzindo a necessidade de sistemas de resfriamento artificial”, observa Bruno.

Pensamento coletivo

A dependência de máquinas para o conforto também é criticada por Brenda Rolim, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-CE). Ela explica que o uso de ar-condicionado ameniza a situação de quem está dentro do edifício, mas joga mais calor para o ambiente externo.

“Tem pessoas que vão pegar ônibus, que vão andar na calçada para chegar até os seus trabalhos. A maioria da população não tem condição financeira tanto de investir nos equipamentos e na infraestrutura de ar-condicionado como de pagar a conta de luz, que é um reflexo dessa necessidade de conforto térmico obtido de forma artificial”, reflete.

 

A criação de uma cidade confortável para todos, inclusive, passa pela compreensão de coletividade diante da discussão ambiental, que se ampliou especialmente na última década. “Não dá mais para fingir que não está acontecendo”, diz Brenda. 

“A gente precisa entender a cidade como um todo e saber que o privilégio de um pode estar gerando a piora da vida de outro. Precisamos fazer a cidade de uma maneira justa e equalizar essas soluções. Não evitando que ela cresça, porque é um setor que movimenta a nossa economia, mas de uma maneira responsável”, entende.

Arquitetura bioclimática

Uma estratégia simples sugerida por ela é a despavimentação, ou seja, a remoção de áreas pavimentadas que acumulam e desprendem muito calor. Quintais revestidos de cerâmica, por exemplo, podem dar lugar a caminhos de pedra menores para favorecer o máximo de área não construída. 

“Isso não é bom só para a drenagem do solo, mas também para evitar que se crie uma massa de calor quente. Quando a luz do sol incide em um terreno que está cheio de copas de árvores ou num jardim que está todo gramado, um pouco dessa energia é refletida de volta, mas a grande maioria é absorvida”, explica Brenda.

A arquiteta também sugere o uso de outras alternativas que minimizem o desconforto térmico, como:

  • Tetos e paredes verdes, ou seja, revestidos com plantas;
  • Uso de telhas de cerâmica;
  • Uso de materiais reciclados que não absorvem tanto calor, como tijolos obtidos da fibra do coco.

“A gente encontra essas soluções em muitas matérias-primas da natureza, em materiais que historicamente a gente já usou. Nossos ancestrais cobriam as casas com palha de carnaúba, usavam telha de barro, porque realmente era mais adequado”, reflete. 

Essas opções integram a chamada “arquitetura bioclimática”, vertente da área que busca construir adequadamente para cada clima e pode integrar novas tecnologias.

Os adensamentos da cidade são algo normal e vão ocorrer, mas também não podem acontecer de uma maneira desordenada, sem criar áreas de respiro.
Brenda Rolim
Presidente do CAU-CE

Bruno Barbosa adiciona que algumas tintas possuem propriedades reflexivas de boa parte da radiação solar, ajudando a manter a superfície mais fria, e são frequentemente usadas em telhados e fachadas. Materiais que mudam de fase (como de sólido para líquido), vidros de controle solar e espumas isolantes também são citadas com a capacidade de absorver e liberar grandes quantidades de calor.

“No Brasil, algumas dessas tecnologias já são aplicadas, especialmente em setores como construção civil, onde há um crescente interesse em eficiência energética e conforto térmico”, cita o professor da Urca.

O que diz a construção civil

O Diário do Nordeste levou as inquietações sobre o futuro das construções cearenses a Patriolino Dias, presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Ceará (Sinduscon-CE).

Ele reconhece o conforto térmico como um tema relevante porque “os clientes estão cada vez mais informados e exigentes” na hora de escolher suas residências, mas afirma que o mercado já considera naturalmente essas preocupações, “posicionando os empreendimentos voltados para o nascente ou, quando economicamente viável, na orientação norte-sul; aproveitando a ventilação natural e minimizando a insolação direta”. 

“As construtoras têm adotado tecnologias e práticas adicionais para melhorar ainda mais o conforto ambiental, como o uso de brises (quebra-sol), fachadas ventiladas, telhados verdes e sistemas de ar-condicionado eficientes”, ressalta.

O setor também tenta ampliar o uso de materiais para reduzir a absorção de calor, como as tintas refletivas, blocos de concreto celular (mais poroso e menos denso) e isolantes térmicos, que proporcionam melhor desempenho em comparação aos materiais convencionais. 

Adaptar o que já está construído

A preocupação com o calor não deve ser exclusiva de novos empreendimentos. Os especialistas indicam ser possível adaptar construções já existentes para um ambiente mais confortável e sustentável. O professor Bruno Barbosa, da Urca, sugere algumas medidas: 

  1. aproveitar a ventilação natural através da criação de aberturas em paredes opostas, promovendo a circulação do ar dentro da casa;
  2. instalar brises, toldos ou persianas externas, que bloqueiam a radiação solar direta e evitam que o calor entre na edificação; 
  3. pintar os telhados com cores claras, especialmente branco, para aumentar a reflexão da luz solar e reduzir a absorção de calor;
  4. adicionar isolamento térmico às paredes e ao teto para reduzir a transferência de calor para o interior da casa;
  5. aplicar materiais como raspas de pneus usados em lajes para diminuir a condução de calor; 
  6. plantar árvores ao redor da casa para gerar sombra natural e ajudar a reduzir a temperatura externa.

“Muitas dessas adaptações são simples e de baixo custo, mas podem ter um grande impacto na melhoria do conforto térmico de uma residência”, aponta.

Essas adaptações também devem ser estimuladas pelo poder público, como afirma a professora Márcia Cavalcante. Em algumas cidades da Ásia, cita ela, as regulamentações fornecem incentivos fiscais, certificações e selos de sustentabilidade para edificações que instalem telhados e terraços verdes. Assim, a longo prazo, seria possível amenizar a temperatura do ar e o consumo de energia.

No Brasil, em 2011, o projeto de lei 1.703 da Câmara Federal até sugeriu que projetos de condomínios verticais, com mais de três unidades agrupadas verticalmente, tivessem a construção de telhados verdes, de preferência com vegetação nativa e resistente. No entanto, após avançar em diversas comissões, ele foi arquivado em 2019.