O conhecimento adquirido nas águas salgadas do Ceará dá lugar aos estudos formais para a construção de embarcações – função exercida por carpinteiros navais que compartilham técnicas entre gerações e regiões de todo o litoral do Estado. Das mãos habilidosas, que muitas vezes se dividem entre a construção e a pesca, são feitas jangadas, botes, paquetes e canoas.
Há estimativa de 5,7 mil embarcações feitas por esses profissionais em todo o Estado, conforme a pesquisa de doutorado “Embarcações a vela do litoral do estado do Ceará - construção, construtores, navegação e aspectos pesqueiros”, publicada na Universidade Federal do Ceará (UFC), em 2013, sendo o mapeamento mais recente.
Para contar a história dos carpinteiros navais, espalhados pelos mais de 570 km de extensão costeira, a reportagem do Diário do Nordeste caminhou pelas areias de Paraipaba, no Litoral Oeste, e de Fortaleza para esta 4ª reportagem da série “Mar de Leva e Traz”, em que são entrelaçadas as memórias e os diferentes usos do litoral.
O especial multimídia integra o projeto Praia é Vida, promovido pelo Sistema Verdes Mares com foco na valorização e na sustentabilidade desse meio indispensável para múltiplas formas de vida.
Lições do mar
"O mar representa a minha vida, aprendi a sentir o cheiro dos ventos, a navegar no mar, tanto faz calmo ou bravo, e a tirar o barco dos perigos", resume Antônio Leonísio Ribeiro, 68, que desde os 10 vive dentro das águas do Mucuripe, em Fortaleza.
Antônio Banqueiro, como é conhecido, começou a produzir as próprias embarcações e se tornou presidente da colônia de pescadores Z-8, na capital cearense. Com tanta experiência, ele reflete e chega à conclusão: conhece todas as perspectivas da pesca.
"Eu tinha 35 anos quando comecei a trabalhar com a carpintaria naval, pela vontade de possuir um barco feito pelas minhas mãos e por ser algo que eu via dos meus avós", lembra. Foram 12 jangadas e botes feitos pelo autodidata.
Foi enfrentando as ondas que entendeu o que precisava ser aperfeiçoado e como usar melhor as serras, plainas, machado e compasso entre as ferramentas. O resultado deste trabalho, feito no quintal de casa ou na areia da praia, é para uso pessoal e dos 3 filhos pescadores.
"Quando as embarcações eram feitas só de madeira, eles me ajudavam a segurar, pregar, serrar. Eu fazia as marcas, as quedas, e ensinava. Assim eles foram aprendendo", conta. As jangadas de fibra são mais leves e duráveis em relação às de madeira, sendo a atual escolha do carpinteiro.
As últimas peças levaram entre 3 e 5 meses para ficarem prontas, e tiveram investimento de R$ 16 mil a R$ 27 mil. Antônio lembra o passado e compartilha o presente no mundo da pesca olhando para o local onde os filhos entram e ficam dias embarcados.
"Os carpinteiros navais são muito procurados, e quando nos deparamos com trabalhos que não dá para fazer só, chamamos um ajudante. Tem altos e baixos, mas vamos enfrentando", detalha. A produção é comercializada no Mercado dos Peixes, que fica ao lado do local de trabalho, e em outros espaços da cidade.
Após décadas dividido entre a construção de embarcações e a pesca, agora se dedica à produção e manutenção das jangadas, enquanto luta por direitos para os pescadores na colônia.
No dia anterior à entrevista para esta reportagem, Antônio representou a classe na Câmara Municipal de Fortaleza para debater os impactos ambientais e sociais da usina de dessalinização projetada para a Praia do Futuro.
Os temas ambientais são sensíveis para o homem que formou a família por meio da pesca de sardinha, palombeta, pescado, barbudo, saúna, pampo, golosa, cavala, serra, camurupim, xaréu, entre outras. Algumas espécies estão mais escassas nos últimos anos.
"Querem fazer coisas de alta tecnologia, do alto do seu conhecimento, mas agredindo a natureza. Querem uns pontos de catavento no mar e eu acredito que isso vai ser degradante, porque o peixe pode não se acostumar com o barulho", acrescenta sobre as propostas de intervenção no mar que conhece.
“Eu não tenho cultura elevada, tenho apenas arte da minha profissão de pescador, mas passei a noite meditando sobre as possibilidades de que isso poderia causar", conta em referência ao projeto da usina de dessalinização.
Esse vínculo com o ambiente leva Antônio a ensinar as lições do mar para a família e ressalta a importância de disseminar o conhecimento nos pontos de praia do Ceará.
"Eu estou fazendo uma embarcação para ensinar os pequenos que querem aprender, como meus netos ou outros que queiram essa profissão. Muitos dizem que é de risco, mas todas têm. Ser um pescador é algo muito digno", conclui.
Lagoinha e a formação de uma comunidade
O orgulho pela profissão também rege os pescadores que formaram e criaram a identidade de Lagoinha, em Paracuru, a 105 km da capital cearense. Por lá, a comunidade trabalhava com a criação de porcos e galinhas e na plantação de bananeiras e cana de açúcar até por volta de 1950, quando uma descoberta mudou o futuro da região.
Naquela época, os pescadores entenderam o valor da chamada “aranha” do mar, que era inicialmente desprezada por eles. A espécie em questão se trata da lagosta, que logo passou até a ser importada, como conta o presidente da colônia de pescadores da cidade Célio Laurentino dos Santos, 49.
"Lagoinha é considerada para as pessoas com mais idade como 'Lagoinha dos Peixes', porque alimentava toda uma região. Depois, diminuiu o esforço da pesca e migraram para a lagosta, que trouxe muito dinheiro a ponto de fazerem as estradas", contextualiza.
Desde então, as riquezas do mar moldam o local que possui 141 membros ativos, entre pescadores, marisqueiras e carpinteiros navais. Estes últimos, como avalia Célio, são a base desse trabalho.
Entre eles José Félix da Costa, 77, apelidado de Zelim, que repousa após mais de 30 anos dedicados ao mundo da pesca.
“Eu só vivia no meio do mundo trabalhando para os outros e disse: ‘vou deixar essa vida’. E com o dinheiro que eu tinha, comecei a comprar material e construí, primeiramente, um botinho de 16 palmos”, lembra.
A poucos metros da casa do seu Zelim, o cenário ainda guardava uma canoa em construção. Quase todos os dias, mesmo já tendo se aposentado do ofício, ele vai ao local para instruir um ajudante contratado para a construção.
“Lá para o final de setembro ou outubro ela fica pronta. Vai ser usada com vela para pegar pargo. Taí o mestre dela, ele não quer mais me levar porque eu já não aguento”, fala apontando para o filho pescador, que escuta a conversa e o ajuda a lembrar de episódios vividos no mar da região.
Além da observação, as técnicas para construir os paquetes feitos por Zelim foram aprendidos com carpinteiros de Fortaleza e do Acaraú. O carpinteiro-pescador lembra de voltar com 30 quilos de biquara, por exemplo, das expedições feitas a partir da embarcação produzida por ele.
O mar foi a minha vida, criei minha família todinha e não foi de outro canto. Eu não sei ler e nem escrever, então foi do mar
Célio acrescenta que praticamente todas as embarcações usadas na cidade são feitas por carpinteiros navais do local, que produzem as peças em casa ou em espaços públicos – geralmente na sombra de cajueiros.
"Aqui é raro se comprar de outras praias, porque o próprio pescador diz como quer a embarcação", explica com relação aos critérios de força e velocidade e aos métodos de pesca.
Desafios socioambientais
O presidente da colônia de pesca Z-25 acrescenta que o trabalho dos homens e mulheres do mar, por outro lado, sofre pelos prejuízos ambientais. Espécies como ariacó, sirigado, cangulo do papo amarelo já não aparecem mais na região.
"O cuidado que poderíamos ter em relação ao mar da Lagoinha é proteger os arrecifes, porque são constantemente explorados por pescadores diante da necessidade. A pesca predatória, algo centenário, ainda ocorre", ressalta Célio.
Eu vejo muito lixo dentro do mar, sacolas de plástico, restos de vasilhames e uma diversidade. O oceano é algo gigantesco e não tem como a gente fazer toda uma limpeza, mas dá para amenizar
Além da proteção à natureza, Célio frisa a importância de cuidar dos trabalhadores do mar. Enquanto fala, mostra um planejamento estratégico para a criação de estaleiro, frigorífico e fábrica de gelo para o local. Ele também sonha com um espaço cultural onde seja contada a história da comunidade.
"Eu quero envelhecer com saúde, tranquilidade e paz. Para fazer isso, eu preciso falar com o João, com o Antônio, com o José, conhecer os filhos deles… Isso é identidade. Quando foge disso o povo fica muito individualista, cada um por si, perde a essência e fica muito sem graça", conclui.
Perfil dos carpinteiros navais
Miguel Sávio, autor da pesquisa “Embarcações a vela do litoral do estado do Ceará”, entrevistou 36 carpinteiros navais espalhados por todo o litoral cearense para entender o perfil destes profissionais. Em relação à educação, a maioria não sabe ler.
“Apesar disso, eles tinham conhecimento de medição e proporcionalidade com uma habilidade para fazer embarcações que duram, fácil, 30 anos. Melhor do que isso, eles preservam uma memória oral, porque eles sabem a terminologia que fazem sem nunca ter lido: proa, bico de proa, fintado, cadastre, todas essas palavras no contexto de arquitetura naval”, destaca.
O conhecimento passa de pai para filho, sim, mas também entre vizinhos e profissionais de outras cidades, como acrescenta.
Não há escola para isso, é uma pessoa fazendo e a outra aprendendo, alguns com os pais, outros com carpinteiros que foram ajudantes
Em geral, os pescadores compram os materiais e levam até os carpinteiros que são pagos para a montagem das peças. Essa logística “diminuiu o tempo de trabalho e, em paralelo, começou o uso de materiais elétricos. Hoje em dia só se usa madeira serrada, regulamentada”, pontua Miguel.
Esse trabalho é feito com muita responsabilidade porque os carpinteiros se preocupam com a segurança dos pilotos, como frisa Miguel. Para o especialista, a profissão não possui o destaque que merece.
“É tão esquecido que nós temos os mestres da cultura, de rendeiras à dança do coco – e eu não estou desfazendo de nada disso –, mas não tem nenhum carpinteiro artesanal. Isso fica meio solto”, avalia.