Bloqueio de bolsas da Capes pode afetar mais de 2,5 mil estudantes no Ceará; ‘é minha única renda’

Por decreto federal, Fundação está impossibilitada de pagar os auxílios aos pesquisadores

O bloqueio de recursos imposto pelo Governo Federal ao Ministério da Educação (MEC) pode impedir o pagamento de bolsas a mais de 2,5 mil estudantes de mestrado e doutorado vinculados à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) no Ceará, neste mês.

Em nota publicada terça-feira (6), a Capes afirma que “a edição do Decreto n° 11.269, de 30 de novembro de 2022, zerou por completo a autorização para desembolsos financeiros durante o mês de dezembro”, afetando o pagamento dos auxílios estudantis.

“Isso retirou da Capes a capacidade de desembolso de todo e qualquer valor, o que a impedirá de honrar os compromissos, desde a manutenção administrativa da entidade até o pagamento das mais de 200 mil bolsas”, diz a nota.

O depósito do auxílio deveria ter caído na conta dos bolsistas nessa quarta-feira (7), o que não ocorreu. No Ceará, 1.252 estudantes de mestrado e 1.303 de doutorado recebem bolsa da Capes em 2022, como informou a coordenação ao Diário do Nordeste em setembro.

No total, então, 2.555 alunos de pós-graduação no Estado estão com a renda deste mês comprometida. Vale lembrar que para estarem aptos a receber o benefício eles devem ter dedicação exclusiva – ou seja, não podem ter vínculo empregatício. 

Lídia Barroso, doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC), está entre os prejudicados. A estudante, moradora de Maracanaú, na Grande Fortaleza, está no segundo ano do curso e tem a bolsa como renda principal da casa. O dinheiro, porém, não chegou.

Na minha casa, somos eu e meu marido, mas minha renda é a principal, porque ele é aposentado por invalidez. Dependo da bolsa pra pagar passagens, pagar alimentação, medicamentos. Os boletos não esperam. Fico sem recurso pra pagar o mínimo, é um clima de muita tristeza.
Lídia Barroso
Doutoranda / UFC

A doutoranda, única da família a chegar neste grau de instrução, desabafa que “é complicado viver nessa corda-bamba”, uma vez que deixou o emprego para se dedicar aos estudos, mas agora está impossibilitada de se manter.

“É um período que exige muita dedicação, prazos e uma produção muito intensa de conteúdo. Como fica quem precisa se dedicar à pós-graduação e trabalhar? Eu ainda acredito muito na educação, e tenho feito todo o esforço pra ter um bom rendimento. A sociedade acha que são despesas que não valem a pena, mas existe um retorno”, reforça.

‘Como pagar nossos aluguéis?’

Se de um lado a Capes não consegue cumprir os compromissos financeiros com os estudantes, do outro eles também fazem malabarismos para pagar as contas. Elayne Castro, 32, pós-graduanda em Letras pela UFC, tem a bolsa como única renda.

Confiando no auxílio, viajou à Espanha por meio do “doutorado-sanduíche”, no último mês de setembro, e amarga agora a incerteza sobre a permanência no país europeu. “Só pude vir por conta da bolsa, comprovar renda é uma das exigências do consulado. Se não tenho renda, fico em dívida com o próprio país”, pontua.

Isso nos preocupa, porque a Capes exige dedicação exclusiva, não podemos ter contratos ou trabalhos formais. Nesse momento, o contrato que temos com a Capes está suspenso. Então, como vamos pagar nossos aluguéis, nosso sustento?
Elayne Castro
Doutoranda / UFC

Elayne frisa que a bolsa é paga a cada dois meses, de modo que todo estudante “precisa ser muito organizado” para fazer o recurso durar. Se o auxílio não for pago em dezembro, as reservas zeram. “Na pior das hipóteses, minha saída vai ser voltar pra casa. Sem a pesquisa realizada”, lamenta.

A situação, aliás, não é nova: ainda no mestrado, em 2016, um corte de verbas na educação federal deixou a estudante sem receber bolsa por 3 meses. “É algo que, infelizmente, ronda minha vida como pesquisadora. Não é fácil, muitas vezes a gente quer desistir, porque a pesquisa no Brasil tem sido deslegitimada”, critica.

“Mas seguimos como uma forma de resistência, principalmente na literatura, que é vista como nada, algo que não deve ser incentivado, supérfluo”, complementa.

#PagueMinhaBolsa

Nas redes sociais, estudantes e docentes iniciam manifestações por meio da hashtag “#PagueMinhaBolsa”. Uma paralisação nacional está prevista para esta quinta-feira (7), conforme projeta José Henrique Freitas, coordenador geral da Associação de Pós-Graduação da UFC.

“A Capes tem até 5 dias úteis pra pagar – hoje (7) é o 5º dia, e ninguém viu a bolsa nos lançamentos futuros do banco nem no aplicativo da Capes. Os alunos já estão relatando que não sabem como vão pagar aluguel, tem gente que abriu até financiamento coletivo”, descreve.

Quando você perde a bolsa, 1 mês que seja, você perde o aluguel, alimentação, a mobilidade. Além disso, temos um impacto muito grande nas pesquisas, porque os alunos não vão ter condição de ir trabalhar e comprar o mínimo pra fazer seus trabalhos.
José Henrique Freitas
Coord. da Associação de Pós-Graduação da UFC

À reportagem, a UFC informou que, atualmente, 729 estudantes têm bolsas de mestrado e 818 de doutorado da Capes, mas que, conforme a Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPPG), "ainda não há estimativa do impacto sobre as pesquisas". 

 

Em nota, a universidade manifestou “apreensão” com o bloqueio financeiro e afirmou que o custeio das atividades de dezembro está prejudicado, impossibilitando o pagamento de bolsas, do funcionamento dos restaurantes universitários, de contratos de transporte, aquisição de passagens aéreas e de insumos para atividades acadêmicas e administrativas.

A Universidade Federal do Cariri (UFCA) também manifestou “profunda preocupação” com o cenário, confirmando que “não poderá pagar em dia seus compromissos previstos para dezembro, entre os quais estão as bolsas e os auxílios estudantis e, ainda, os contratos de terceirizações”.

A UFCA explica, ainda, a gravidade do atual congelamento dos recursos financeiros.

"'Financeiro' difere de 'orçamento'. Antes da disponibilização de financeiro, existe a liberação de orçamento, que é uma promessa de recursos prevista na Lei Orçamentária Anual (LOA). Com ela, as instituições assumem compromissos com fornecedores e estudantes. As instituições podem cumprir esses compromissos por meio do financeiro, que é liberado periodicamente pelo governo federal", detalha a UFCA, reforçando que o atual bloqueio é financeiro, afetando os "compromissos imediatos".

A instituição pontua que "as medidas do governo federal inviabilizam pagamentos de bolsas, auxílios e serviços já neste mês de dezembro", despesas que totalizam cerca de R$ 3 milhões só na UFCA.

O IFCE informou, em publicação no site oficial, que o bloqueio financeiro chega a R$ 8,2 milhões - ou seja, no momento, a instituição precisa deste valor "apenas para honrar as despesas já empenhadas e liquidadas".

"Se não houver mudanças, a Reitoria e todas as unidades precisarão realizar cancelamento de empenhos já realizados para equilibrar seu saldo orçamentário", afirma.

‘Desbloqueio’ parcial

Em nota ao Diário do Nordeste, o Ministério da Economia afirmou que a portaria nº 10.395, publicada nessa terça-feira (6) pela Secretaria Especial do Tesouro e Orçamento (SETO), aumentou o limite de recursos que podem ser usados pelo MEC.

“A portaria viabilizou aumento em R$ 300 milhões dos limites de pagamentos de despesas discricionárias do MEC, mediante redução nos cronogramas de pagamento de despesas obrigatórias. Ao MEC compete alocar esses recursos entre seus órgãos, conforme suas prioridades”, informa a nota.

A reportagem solicitou posicionamento do MEC e aguarda resposta.

Também enviamos às universidades federais do Ceará – UFC, UFCA, Unilab e IFCE – questionamentos sobre quantos estudantes são afetados e qual o valor exato do bloqueio. As instituições não responderam.