“Eu via tudo como cuidado, mas, na verdade, ele controlava meus passos. Quando comecei a fazer terapia, percebi que o abuso aconteceu desde o início.” A fala sobre uma relação abusiva é de Mara*, mas poderia ser dita a cada 20 minutos por uma cearense diferente. De toda classe, raça e crença, quase 20 mil se unem, neste ano, por um fato: foram vítimas de violência doméstica.
O dado é da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), e dá conta apenas dos casos que chegaram a ser denunciados com base na Lei Maria da Penha (nº 11.340). O registro exato, entre janeiro e outubro, foi de 19.865 mulheres vítimas: uma a cada 20 minutos.
Nacionalmente, o tema voltou a ocupar os noticiários após a apresentadora Ana Hickmann denunciar ter sido vítima de violência doméstica por parte do marido, Alexandre Correa. Em entrevista à TV Record, Ana relatou que sofria abusos psicológicos, patrimoniais e que chegou a ser agredida por ele. Ela solicitou o divórcio com base na Lei Maria da Penha, mas teve o pedido negado.
Em nível local, Mara*, que não terá a identidade exposta aqui, se une à perversa estatística. Ainda vivencia uma violência que escalou do “controle dos passos” à agressão física, permeada por abusos psicológicos e até patrimoniais.
“Ainda no namoro, começou com o controle financeiro. ‘Deixa que eu cuido pra ti, você não precisa se preocupar’”, relembra. “Ele não me deixava ter a rotina de antes, passou a me buscar e deixar em todo canto. Eu via isso como cuidado, mas era controle”, diz Mara*.
Eu não podia ir ao supermercado comprar algo que eu queria que não fosse controlado por ele. Eu tinha que comer escondido no trabalho, porque ele controlava até o que eu comia. Controlava minhas visitas à minha família e até as idas ao culto.
Com a chegada do primeiro filho, o comportamento abusivo do marido seguiu. Mara* relata que “só começou a bater de frente” após o segundo filho nascer. Hoje, as duas crianças estão sob a guarda do pai, enquanto a mãe “luta na Justiça” para retomá-la.
“Ele tinha muito forte na cabeça que bater em mulher dava cadeia – mas o que ele fazia comigo era pior. Ele esmurrava a parede, me trancava no quarto, me sacudia, me apertava. Na pandemia, pedi que ele saísse da minha casa. Ele saiu, mas começou a usar meus filhos contra mim”, conta.
A denúncia da violência doméstica à Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza veio em 2022. Na ocasião, a família da vítima considerava “um exagero”. “Quando as mulheres decidem denunciar, fazem, mas estão fracas. Eu tive coragem”, diz.
“O que as une é a violência”
Um dos equipamentos mais importantes de suporte às vítimas é a Casa da Mulher Brasileira (CMB), em Fortaleza, que reúne numa só sede todos os órgãos de proteção e justiça. Daciane Barreto, coordenadora da CMB, lamenta que “a violência doméstica é perversamente democrática”, mas destaca o perfil que predomina entre as atendidas.
“A violência não escolhe cor, status social nem faixa etária. Mas cerca de 80% das mulheres que atendemos aqui são negras e pobres, e quase 60% são periféricas. Outras 35% não estão inseridas no mundo do trabalho, gerando dependência do agressor”, frisa.
Temos mulheres doutoras, trabalhadoras, desempregadas. O que as une é a violência, as dores e a angústia. A sociedade patriarcal e misógina é o lugar comum. E as une também a necessidade de buscar ajuda, de ter um acolhimento.
A gestora estima que a CMB realiza 110 atendimentos por dia, e reconhece que, nas últimas 4 décadas, a legislação, a rede e o atendimento avançaram, “junto com a nossa participação na política” – mas pontua que os desafios ainda são múltiplos.
“Ainda existe uma demanda represada de mulheres que não denunciam, por todo um histórico de falta de políticas públicas e equipamentos que a respeitem. Temos uma educação que precisa incluir a discussão sobre gênero”, avalia.
“Precisamos discutir com as crianças a Lei Maria da Penha, a Lei do Minuto Seguinte, a Lei do Feminicídio. É uma questão de direitos humanos. Enfrentar a violência vai além de construir equipamentos”, completa Daciane.
Cinco formas de violência contra a mulher estão tipificadas e descritas pela Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006) e podem (devem!) ser denunciadas na Casa da Mulher Brasileira, nas Casas da Mulher Cearense, em delegacias especializadas ou quaisquer outras:
- Violência física – ofende a integridade corporal, deixa marcas no corpo;
- Violência psicológica – causa danos emocionais, com diminuição da autoestima, controle de ações, crenças, comportamentos, humilhação, xingamentos etc.
- Violência sexual – constrangimento a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força;
- Violência moral – prática de calúnia, difamação ou injúria;
- Violência patrimonial – retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
Ciclo da violência
O perfil das mulheres assistidas no Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher da Defensoria Pública do Estado (Nudem) se assemelha: também é de mulheres negras (82%) e jovens de 26 a 35 anos (31%). E uma a cada 5 presenciou violência na infância, como pontua a titular do Nudem, Kelly Nantua.
“Hoje, adultas, elas vivem uma repetição do ciclo da violência doméstica – e 61% das atendidas relatam que os filhos já presenciaram agressão sofrida por elas dentro de casa. São mulheres com muitas dependências, de econômica a emocional”, cita a defensora.
A mulher vítima de violência está em todas as classes sociais: não é algo da pobre e analfabeta. Claro que há fatores que agravam e facilitam a vulnerabilidade, mas a violência doméstica é, infelizmente, bem democrática. A dependência emocional, por exemplo, circula facilmente entre todas essas classes.
A titular do Nudem reforça que a criação da Lei Maria da Penha, em 2006, trouxe o avanço e o aprimoramento de muitas políticas públicas especializadas, mas frisa que ainda são muito necessárias “campanhas para o homem não praticar e para mulher se reconhecer como vítima”.
“A mulher pode procurar a Defensoria Pública na cidade dela, a delegacia comum caso não tenha a Delegacia da Mulher. A ampliação dessa rede é necessária e é um fortalecedor nessa política”, reforça Kelly.
Como solicitar medida protetiva online
No Ceará, é possível fazer a solicitação de uma medida protetiva contra o agressor de forma online. A Polícia Civil explica que, para solicitar, a vítima precisa ter uma conta no gov.br e seguir os passos:
- Acessar o site mulher.policiacivil.ce.gov.br, com CPF e a senha da conta do gov.br;
- Preencher um formulário eletrônico com informações sobre a violência.
“Após a conclusão do preenchimento, a Polícia Civil recebe e já encaminha ao Poder Judiciário, para que este decida sobre o pedido das medidas”, informa a instituição.
Onde buscar ajuda
Caso sofra ou presencie violência doméstica, qualquer pessoa pode denunciar por meio de diversos canais, desde os gerais aos especializados. Caso não haja Delegacia de Defesa da Mulher no município, qualquer distrito policial deve acolher a vítima para a denúncia.
Gerais
- 190 – Polícia Militar
- Disque 180 – Central de Atendimento à Mulher
Grande Fortaleza
- Casa da Mulher Brasileira – Rua Tabuleiro do Norte, S/N. Bairro Couto Fernandes, Fortaleza, Ceará. Telefone: (85) 3108-2999
- Delegacia de Defesa da Mulher (Fortaleza)
(85) 3108-2950/ ddmfortaleza@policiacivil.ce.gov.br
Rua Teles de Sousa, s/n – Couto Fernandes, Fortaleza - Delegacia de Defesa da Mulher (Pacatuba)
(85) 3384-5820/ ddmpacatuba@policiacivil.ce.gov.br
Av. Marginal Nordeste, sn – Conj. Jereissati 3, Pacatuba - Delegacia de Defesa da Mulher (Caucaia)
(85) 3101-7926/ ddmcaucaia@policiacivil.ce.gov.br
Rua Porcina Leite, 113 – Parque Soledade, Caucaia - Delegacia de Defesa da Mulher (Maracanaú)
(85) 3371-7835/ ddmmaracanau@policiacivil.ce.gov.br
Av. Padre José Holanda do Vale, 1961 – Cagado, Maracanaú
Interior do Ceará
Casas da Mulher
- Casa da Mulher Cearense de Juazeiro do Norte – Av. Padre Cícero, 4501. Bairro São José. Telefone: (85) 98976-7750
- Casa da Mulher Cearense de Quixadá – R. Luiz Barbosa da Silva, s/n. Bairro Planalto Renascer.
- Casa da Mulher Cearense de Sobral – Av. Monsenhor Aloísio Pinto, s/n. Bairro Cidade Gerardo Cristino.
-
Casa da Mulher em IbiapinaRua Sargento João Gomes Neto, S/N, Ibiapina.
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Casa da Mulher em Novo OrienteAvenida Francisco Rufino, 140, Centro. Novo Oriente.
-
Casa da Mulher em Nova Russas
Rua Leonardo Araújo, S/N, Patronato, Nova Russas. -
Casa da Mulher em São Benedito
Avenida Tabajara, 425, São Benedito
- Delegacia de Defesa da Mulher (Crato)
(88) 3102-1250/ ddmcrato@policiacivil.ce.gov.br
Rua Cel. Segundo, 216 – Centro, Crato - Delegacia de Defesa da Mulher (Iguatu)
(88) 3581-9454/ ddmiguatu@policiacivil.ce.gov.br
Av. Monsenhor Coelho – São Sebastião, Iguatu - Delegacia de Defesa da Mulher (Icó)
(88) 3101-7922/ ddmico@policiacivil.ce.gov.br
Rua Padre José Alves de , 963 – Novo Centro, Icó - Delegacia de Defesa da Mulher (Sobral)
(88) 3677-4282/ ddmsobral@policiacivil.ce.gov.br
Av. Lúcia Sabóia, 358 – Centro, Sobral - Delegacia de Defesa da Mulher (Quixadá)
(88) 3101-7918/ ddmquixada@policiacivil.ce.gov.br
Rua Vicente Albano de Sousa, 2072 – Jardim Monólitos, Quixadá
Salas Lilás
- Sala Lilás – Delegacia Municipal de Jaguaruana
(88) 3418-1370 / dmjaguaruana@policiacivil.ce.gov.br / 08h – 12h I 13h – 18h
Rua José Cláudio de Melo, 10, Jaguaruana - Sala Lilás em Santana do Cariri
Centro de Referência de Assistência Social Raimundo Lopes da Cruz
Bairro Papa João Paulo II, Santana do Cariri - Sala Lilás em Viçosa do Ceará
Travessa Fontenele Sobrinho, nº 33 - Centro - Viçosa do Ceará