18 mil caixas de documentos cartoriais lotam Arquivo Público e ameaçam proteção de acervo que conta história do Ceará

Hoje, 80% da capacidade de armazenamento do arquivo, localizado no Centro, é ocupada por registros que pertencem aos cartórios e têm caráter particular

Certidões de nascimento, de casamento, de óbito, procurações, contratos de compra e vendas, inventários e escrituras, dentre outros documentos pertencentes a cartórios de 40 cidades do Ceará lotam, há décadas, o prédio do Arquivo Público Estadual do Ceará, na Rua Senador Alencar, no Centro de Fortaleza. A situação, que não se sabe precisamente quando começou, faz com que hoje 18 mil caixas de documentos cartoriais estejam no local, ocupando 80% da capacidade de armazenamento físico da instituição, que abriga registros desde 1703.

O efeito disso é que documentos que reconstituem a história do Ceará e estão no prédio do Arquivo Intermediário, na Rua Pinto Madeira, também no Centro, e que, de fato, precisam ser armazenados no Arquivo “definitivo”, seguem com a proteção e o aproveitamento afetados, aguardando a liberação de espaço para, finalmente, serem transportados e após catalogados e analisados, disponibilizados à população.  

Os documentos cartoriais, segundo o Arquivo Público, são de cartórios de 40 cidades. Não foram especificadas quais Do total, 10 cartórios são de Fortaleza. Também não foram repassados os nomes. Dentre os cartórios, há dois da capital cuja documentação abrigada no Arquivo Público é do século XVIII. 

Em paralelo, dentre os documentos que pertencem de fato ao poder público e aguardam, para sair do Arquivo intermediário rumo ao Arquivo Público estão: 

  • Registros da Assembléia Provincial do Ceará, na época do Brasil-Império; 
  • Documentos da história da Educação no Ceará; 
  • Documentações da Secretaria da Cultura e da Fazenda, esta última referentes às décadas de 1920 e 1930 e;
  • O acervo da Firma Boris Frères (que apesar da natureza particular) retrata a dinâmica das atividades econômicas do Ceará da segunda metade do século XIX até meados do século XX. 

No prédio de estilo neoclássico, característico do século XIX, com 15 janelões no térreo e 19 sacadas no pavimento superior, no Centro de Fortaleza, há precisamente 18.474 caixas de documentos de cartório. E isso se reflete, por exemplo, na ocupação integral da maior sala localizada no térreo do prédio com documentos cartoriais. Esses registros também estão abrigados no segundo andar e em corredores da edificação. 

O imóvel, conhecido como Solar dos Fernandes Vieira, construído em 1880, abriga desde 1993 o Arquivo Público do Ceará, instituição vinculada à Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (Secult). 

A orientadora de célula do Arquivo Público do Estado do Ceará, bacharel em Museologia e Arquivologia, Janaína Ilara, que desde julho de 2023 está à frente da instituição, relata que em 2022 um arquivista do local constatou que havia ali um acervo que não deveria estar naquele local. À época, explica, foi feito um parecer técnico em julho daquele ano levado à Secult. 

No Arquivo não se sabe ao certo quando essa documentação começou a chegar nem sob qual justificativa. Mas, servidores que atuam na instituição há quase 30 anos registram que os documentos já estavam lá quando chegaram. 

Necessidade de providências

Em janeiro de 2024, o Ministério Público Estadual do Ceará (MPCE) expediu uma recomendação para o Governo do Estado adote providências necessárias, junto ao Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) e aos tabeliães, para que os cartórios da capital e do interior se responsabilizem pelo armazenamento dos documentos particulares guardados nos prédios dos Arquivos Públicos (o intermediário, na Rua Pinto Madeira, e o definitivo, na Rua Senador Alencar, ambos no Centro). 

A 1ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, com atribuição na Defesa do Patrimônio Público, instaurou um inquérito civil com a finalidade de acompanhar as providências que estão sendo adotadas nesse caso. Segundo o MPCE, a recomendação considerou vistorias realizadas nos dois prédios, nos quais foi constatada “a péssima infraestrutura do Arquivo Intermediário”. 

Em nota, o MPCE informou ao Diário do Nordeste que no Arquivo Intermediário há “documentos históricos a serem transferidos para o Arquivo Público que, no entanto, estava sem espaço para receber os documentos”. Isso justamente por conta da ocupação no prédio, com o material dos cartórios. O MPCE destaca que os próprios tabeliães dos cartórios devem se responsabilizar pela guarda, armazenamento e a conservação dos documentos particulares que não sejam considerados de interesse público ou social. 

No Arquivo Público, a gestora Janaína Ilara reitera que a situação gera alerta, pois diante desse “desvio de finalidade”, o equipamento acaba funcionando como uma “grande extensão de cartório”, com emissão de certidões e busca de documentação. 

“A gente não pode simplesmente colocar tudo na rua. Já está aqui, tem que resolver. Sabemos que é errado, que atrapalha o nosso trabalho. Com essa documentação sob a nossa custódia a gente começou a funcionar como uma grande extensão de cartório. O arquivo público não está usando 100% de sua capacidade porque uma parte da equipe de trabalho está voltada para os cartórios”. 
Janaína Ilara
Gestora do Arquivo Público do Ceará

Para se ter dimensão, aponta ela, no dia a dia, além do comprometimento do espaço físico, fato que impede o abrigo de documentos que realmente devem ser custodiados no local, parte dos funcionários também atua atendendo a pessoas que buscam documentos cartoriais, como certidões de casamento, nascimento e óbitos, por exemplo. 

Esse acesso é gratuito para a população, e o custeio fica a cargo da instituição estatal. Diferentemente das consultas feitas nos cartórios, as quais os custos são diretamente pagos pelos solicitantes particulares às instituições cartoriais.  

“Nosso papel enquanto arquivo é dar acesso à documentação. Tem trabalhos feitos em cima da documentação. O fato de termos uma documentação de outro poder, estou usando equipe, insumo, isso significa dizer que a documentação do arquivo público não está tendo o cuidado que deveria ter. Além de outro ponto que é essa documentação está sob a nossa responsabilidade”, destaca Janaína. 

O que os cartórios estão fazendo?

Desde que foram acionados no início do ano, relata Janaína Ilara, “alguns cartórios já vieram, já olharam. Estão pedindo prazo para ver onde vão armazenar. Outros já foram conferir e estão esperando o transporte”. No caso dos dois que têm documentos mais antigos, há um diálogo com a gestão do Arquivo para que ocorra a retirada do que for de 1920 até agora. 

Do início do ano até o momento, um cartório já fez a retirada de cerca de 700 documentos, informa Janaína. 

O vice-presidente da Associação dos Notários e Registradores do Ceará (Anoreg Ceará), Cícero Mazzutti, explica que essa situação é efeito de que, “até 1994, os cartórios eram do Tribunal de Justiça e neles também funcionam as varas dos fóruns. Eram os próprios cartórios que tomavam conta (dos documentos). Em 1994, houve uma separação entre os cartórios que a gente conhece hoje da atribuição judicial. O que acontece? O acervo que os cartórios tinham dos processos judiciais foram encaminhados para o Judiciário e parte do acervo antigo foi encaminhado para o Arquivo Público”. 

De acordo com ele, há cartórios com livros (formato de armazenamento dos documentos) no Arquivo Público desde 1756. De acordo com ele, depois de 1994 a responsabilidade pelo acervo do cartório passou a ser do titular do dono do cartório. 

“Os livros estavam recolhidos lá por um costume antigo quando os cartórios ainda eram em parte administrados pelo próprio Tribunal de Justiça. Com a separação, passado mais um tempo, o Ministério Público e o Executivo estadual viram que haviam livros recolhidos em um acervo público, mas que a manutenção deles cabia ao oficial do cartório”, explica ele. Cícero também destaca que esse recolhimento se dava em livros que não eram mais utilizados pelos cartórios depois de um certo período. 

Ele também explica que tem cartórios com acervos maiores e outros menores. “Muitos (cartórios) estão procurando o Arquivo Público para ver em que estado estão esses livros, se é possível manuseá-los. Dependendo da condição, sequer conseguem fazer o transporte”, completa. 

O que muda na conservação e consulta

O vice-presidente da Anoreg Ceará, Cícero Mazzutti também reforça que o arquivo do cartório é público e por isso podem ser emitidas certidões.

“A pessoa vai lá e diz quero uma certidão da escritura de compra e venda da casa de José de Alencar, por exemplo. O cartório pede um prazo para fazer a busca e fornecer uma certidão, aí vai ter o custo da emissão do documento. Quando está no cartório, para fornecer qualquer imagem ou certidão tem um custo, pois repassamos parte dos valores ao Tribunal, ao Ministério Público, à Defensoria Pública e parte do valor ao tabelião para a conservação do acervo”.
Cícero Mazzutti
Vice-presidente da Anoreg Ceará

Portanto, muitos serviços de consulta de documentos cartoriais que hoje são gratuitos no Arquivo Público, quando retornar para a administração particular do tabelião, informa ele, “para acesso ao arquivo vai haver uma cobrança”. 

Processos do Tribunal no Arquivo

O prédio do Arquivo Público também abriga uma vasta documentação do Tribunal de Justiça, conforme informa a gestão do equipamento ligado à Secult. Em 2022, relata Janaína Ilara, houve uma parceria do Arquivo Público com o TJ para atuar no processo de retirada dos documentos que não deveriam estar na edificação. 

“São documentos da Justiça, processos. Tem uma equipe de oito pessoas fazendo o trabalho, a análise do que pertence ao Tribunal e precisa levar de volta, pois cada poder (Executivo, Legislativo e Judiciário) tem o seu arquivo”, explica.

Em 2023, cerca de 6 mil caixas do TJ foram retiradas do Arquivo Público. A estimativa é que será necessário ao menos 3 anos para que toda a documentação do Tribunal seja levada de volta. 

Enquanto isso, os documentos que estão no Arquivo intermediário seguem aguardando para serem levados para o prédio “definitivo”. 

“Com a saída, teremos uma capacidade maior de guarda e vamos trazer essa documentação. Vamos identificar este documento, colocar eles dentro de uma série. Indexar. É a possibilidade de recuperar essa informação de um modo mais fácil e de deixar acessível”.