Eles gritam alto, espiam pela calçada ou simplesmente aguardam quem chega. Os vizinhos da festa não têm padrão de comportamento, mas costumam seguir cartilha: se valem da alegria do Carnaval para agir diferente. Há os que alugam a casa para o período e os que se reinventam, com ela, durante os quatro dias de diversão. O comando é não parar.
O Verso percorreu três pólos carnavalescos de Fortaleza para saber como agem aqueles que moram ao redor da folia. Gente de casinha baixa ou de dois andares, de espírito pacato ou frenético. Entre Benfica, Mercado dos Pinhões e Largo da Mocinha, histórias que se mesclam pela leveza dos relatos ou diante da profundidade deles. Até de sonhos se fala.
Nas tardes e noites mominas da Praça da Gentilândia, três lares pareados resumem bem essa experiência. Ocupam a rua João Gentil com graça. O primeiro cantinho é o de Rachel Magalhães, 53. Tingido de encarnado, é chamado Casa Vermelha. Na frente, mesas e cadeiras de plástico e uma tenda – vermelha, claro – são cenário para conversas e degustações.
É a primeira vez que a anfitriã abre as portas do recinto para vender cerveja, caipirinha, tira-gosto e almoço. Começou no Pré-Carnaval e viu que foi tudo muito bom. “Agora a gente segue até terça-feira assim”, vibra, décadas de moradia no endereço. “Ou melhor: tá dando tão certo que tô pensando em fazer sempre, não só no Carnaval. Regularizar mesmo”.
Enquanto atende ao pedido de um – “a panelada tá perto de sair?” – e de outro, a servidora municipal, contadora, corretora de imóveis e produtora rural encara com prazer a loucura bendita. Confessa ter sido mais carnavalesca na juventude, menos atuante na meia-idade e, agora, voltou ao rojão. A estreia do próprio negócio nessa época ajudou no processo.
“Ou eu entrava de vez na festa ou teria que sair pra passar o Carnaval fora. Preferi ficar. Com o barulho dos shows, não dá pra permanecer em casa se você não estiver curtindo”, confessa e ensaia uma dança. “O valor que vou arrecadar com a venda de tudo ainda não tem destinação certa. Mas o que vier será bem-vindo”.
Relato que ganha o corpo folião de Gael Donato, 24, vizinho de Rachel e tão empreendedor quanto. Está rodeado de gente quando propomos diálogo. São os seis amigos que toparam a empreitada com ele, de comercializar bebidas como cerveja e vinho a preços bem abaixo do mercado. A versão pink do São Braz, por exemplo, sai a R$ 10. E há as vendas casadas.
“A gente se perguntou por que não nos reuníamos e lucrávamos com isso, já que temos o espaço e a lábia de venda”, explica, contente, o barista e estudante de Ciências Sociais. O espaço do qual ele fala é a casa da madrinha, Salusineivan Gomes. Aos 77 anos, ela nasceu no imóvel e festeja a movimentação nos cômodos, uma vez que fica “mais seguro”.
“É até bom eles estarem aqui porque, quando eu fico só, tento ler e não consigo. A venda das bebidas me distrai”. E bote venda nisso! Nos poucos minutos com a turma, sentimos a adesão do público, sobretudo os mais jovens. Enxergavam nas placas escritas a mão o preço dos produtos, mas também a vontade de quem não quer cochilar.
“Antes mesmo de a festa começar, já estamos aqui. Cada um colaborou com um valor em dinheiro para comprar as mercadorias e dar certo. No fim, tentamos unir o útil ao agradável: curtir e conseguir um dinheiro”, vibra Gael.
Açaí e mais comida
Ainda no Benfica, outra vivência bonita é a de Rosileide Queiroz, 50. Parece tímida envolta pelos freezers. E permanece mesmo após a prosa, mas tem um quê de ousadia: arriscou vender açaí em plena folia e na própria casa. “A ideia surgiu do nada. Todo mundo aqui é louco por açaí e, como não estão vendendo ao redor, vimos que seria uma novidade”, conta.
Atribui ao calor a força do negócio. Muita gente já passou para experimentar a iguaria, mas sobretudo para atenuar a quentura. Um negócio feito para o Carnaval de 2024. Parece encomenda. “Já no Pré-Carnaval, o retorno foi bom, a gente foi apresentando o ponto a quem chegava. Agora, no Carnaval, a esperança é que mais gente venha”.
As portas abrem e fecham conforme a programação de shows. Em anos anteriores não era assim. Elas fechavam tão logo a folia começava, uma vez que a família toda viajava. Mas Fortaleza recebe novos ares a cada ano, e o que não era destino virou permanência.
“Meu esposo também tem comércio, então ficamos mais voltados ao trabalho. Como esse espaço da casa ficou ocioso, surgiu a oportunidade. Fica todo mundo junto – minha filha, meu genro e mais gente – para vender o açaí. O dinheiro vem para quitar muitas dívidas”, gargalha, baixinho. “Destino para ele sempre tem. Antes de conseguir, ele já foi gasto”.
Da Gentilândia para os Pinhões, a algazarra continua e ganha tentáculos. Carla Gisele, 43, observa tudo sem desviar o olho da lida. Feito Rachel Magalhães, armou tenda em frente ao lar, na Gonçalves Lêdo, 311, e pôs as panelas para jogo: nelas, a delícia das comidas típicas, seguida de itens diversos – do cigarro ao café, da água ao espetinho.
Desde 2006 é assim. Ela começa a vender às 16h e segue até o último folião dizer “chega”. “Com a renda que consigo, passo de dois a três meses folgada. E ainda dá pra aproveitar a música dos shows”, ri. Responsável pelo preparo dos quitutes, começa a cozinhar às 7h e termina às 2h do outro dia, trabalhando antes, durante e depois do evento. Incansável.
“Meus bisavós moraram nessa casa”, olha para trás e olha a fachada carcomida, embora muito sólida. “Ela é muito velha e não pretendo sair daqui, só quando eu morrer. Aqui nos Pinhões é sempre tranquilo, o pessoal brinca direitinho. Ser vizinha da festa é bom”.
Perto dali, o cheiro de oficina se confunde com aroma de churrasco e fumaça. Estamos na Praça Visconde de Pelotas, 16, praticamente ao lado onde acontecem os shows no Mercado dos Pinhões. Alex Vieira, 32, está ao lado da filha e da esposa. Um amigo controla a venda de bebidas – três cervejas por R$ 11 – enquanto ele vê quem entra e quem sai do banheiro.
“Faz uns quatro anos que faço isso, e sempre dá certo”, conta. Embora ali não seja o próprio lar, é o espaço onde o marceneiro trabalha e ao qual atribui novo significado no agito momino. As madeiras continuam lá, os instrumentos de ofício também. Mas ele aluga os banheiros e coloca o isopor numa mesa como forma de angariar renda e, por que não, alegria.
“Nos dias normais, na oficina não funciona nada relacionado a comida e tal. É diferente dos outros pontos aqui dos Pinhões. Mas a gente dá esse jeito no Pré e no Carnaval. Ajuda a pagar as contas”, abre o sorriso.
Casa cheia, família a todo vapor
Por fim, há que se falar de dona Fátima Pinheiro, 70. A professora aposentada é toda contentamento quando se achega para a prosa. Está radiante, embora intranquila: muita gente pede pratinho, bebida ou sobremesa na residência dela – Rua Padre Climério, 178. No período carnavalesco, Largo da Mocinha, o chão vira Ponto da Fatinha.
O entra e sai de público justifica a fama do recanto. Moqueca de arraia, vatapá, desfiadinho de carne do sol, pastéis, bolo, caldo, água, cerveja e whisky circulam de mão em mão. Há banheiro disponível também. “A gente tem que aproveitar, meu filho”, dispara. “Minha equipe são 15 pessoas, entre filhos, sobrinhos e outros parentes. Todo mundo trabalha”.
Dona Fátima é irmã do criador do bloco Não Ispaia Senão Ienche, Dilson Pinheiro, cria daquelas bandas. Há 15 anos a agremiação saiu do Benfica e ganhou a Praia de Iracema; há 15 anos, a casa da empreendedora se veste de Ponto da Fatinha para o Carnaval.
“Com o dinheiro que consegui ao longo desses anos, reformei minha casa, paguei a escola da minha menina, agora estou pagando até a faculdade dela. Foi uma vida construída por meio disso aqui. E é bom demais, vêm muitos amigos, pessoas de muito tempo. Alugo as mesas, as mais idosas vêm pra sentar… Gosto bastante”.
Há sete décadas sob o mesmo teto, só há o que celebrar. Não se conter, festejar. No semblante de Fatinha, estar ao redor da grande festa é bênção. Prefixo do bem.