Visibilidade lésbica: coletivo Sapato Largo fortalece vivências e memórias através da escrita

Com oficinas, saraus e publicações independentes, grupo busca criar memória social sobre histórias e amores invisibilizados

Quando a artista multilinguagem Fernanda Meireles, a antropóloga Isadora Gurgel e a designer Laura Daviña decidiram criar um projeto de escrita criativa juntas, tinham os mesmos propósitos: criar redes de comunicação através da palavra e registrar histórias, descobertas e amores comumente invisibilizados. Assim surgiu, no início deste mês, o Sapato Largo, coletivo artístico cearense que tem como intuito impulsionar a produção sobre as diversas “vivências sapatônicas” na Capital.

Por meio de oficinas de escrita, saraus e da publicação independente de obras ficcionais e não-ficcionais, o grupo busca “criar memória social e um patrimônio material e imaterial através dos encontros”, explica Fernanda.

“O Sapato Largo veio de uma vontade de registrar nossas histórias e criar junto narrativas de ficção e poemas em torno do amor sapatão”, pontua a artista. “Ele se chama ‘largo’ porque, dentre as concepções do que é ser sapatão, existe a ideia de que as fronteiras entre orientação sexual e identidade de gênero podem, sim, estar um pouco borradas. Nós pensamos sobre ser mulher de outra maneira, de uma maneira um pouco mais ampla”, completa.

Deste modo, o coletivo se propõe a ser um espaço de criação não só para mulheres lésbicas – cis e trans –, mas também para pessoas transmasculinas e não-binárias.

[Queremos] que seja possível criar um documento histórico de uma maneira leve e divertida, criando espaços seguros para isso, e que a gente possa espalhar a nossa história e registrar o que é memória social de pessoas vivas ainda. A história acontece enquanto a gente escreve”, conclui Fernanda.

Eventos criam laços e difundem produção autoral

Pensado para dar vazão à criatividade, o grupo tem se reunido periodicamente para escrever, ler e criar laços entre pessoas que querem dividir suas memórias. O primeiro evento público do coletivo ocorreu no último dia 17, no Salão das Ilusões, e teve programação diversa: além da oficina de escrita e da leitura de escritos autorais, o espaço recebeu projeções de artes visuais e um workshop de pandeiro com a percussionista Ianka Oliveira.

Durante o momento, cerca de 25 pessoas dividiram suas vivências e foram impulsionadas a realizar exercícios voltados para a escrita de si.

“A primeira parte da oficina focou na fabricação e apresentação de pequenos bilhetes, recados que gostaríamos de falar ou ter falado para a primeira pessoa pela qual nos apaixonamos quando adolescentes”, conta Isadora Gurgel. “Tudo o que precisávamos era mesmo de caneta, papel e memória”.

Outro exercício pedia que as presentes descrevessem a primeira "sapatão referência" de suas vidas. Um terceiro pedia que as oficineiras narrassem uma situação em que se sentiram livres e seguras enquanto lésbicas.

“Algumas de nós demoramos a lembrar, mas logo veio à tona. A família surgiu como suporte de muitas, assim como as amizades enquanto família. Mas também houve namoradas que nos ajudaram a descobrir que o amor também pode ser nosso acalanto nos momentos mais difíceis de ausência e de ruptura”, lembra Isadora.

O resultado do encontro, que durou o dia inteiro, foi publicado no zine intitulado “Sapato Largo”, lançado em parceria com a Associação dos Docentes da Universidade Federal do Ceará (ADUFC) na última quinta-feira (22), no Beco do Tambor, Centro da Cidade.

A palavra literária nunca foi um luxo para nós, mulheres lésbicas, bissexuais, pessoas trans não-bináries e transmasculines que se identificam como sapatonas, sapatãs, sapatões. Na verdade, a escrita continua a ser a ferramenta responsável para que outros mundos sejam possíveis, onde nossa existência ultrapasse a sobrevivência."
Isadora Gurgel
Antropóloga, professora, pesquisadora e idealizadora do Sapato Largo

Nesta quinta-feira (29), Dia da Visibilidade Lésbica, o grupo realiza seu terceiro encontro, no Bistrô Toques de Luz (Centro). Na ocasião, haverá um sarau, e o zine Sapato Largo será comercializado pelo valor sugerido de R$ 20 a R$ 30 – o preço que o leitor puder e quiser pagar. O evento começa às 19h e é aberto ao público.

“O caminho é longo, mas a estrada nos sorri”

Definido como um “coletivo em expansão” pela idealizadora Fernanda Meireles, o Sapato Largo deve manter encontros mensais para seguir estimulando a produção autoral, além de incluir novas atividades nas programações culturais do grupo. 

Ao ser questionada sobre planos, Fernanda se diz esperançosa. “O caminho é longo, mas a estrada nos sorri”, destaca. “A gente quer incluir nesses encontros não só espaços de leitura e reflexão, mas também de festa”, completa.

Além de ampliar a programação, Fernanda pontua que o coletivo deseja chegar a novos lugares nos próximos anos, e já se planejam outras publicações coletivas.

“A gente quer continuar fazendo publicações que misturam memória e ficção sapatão e está com muita vontade de viajar pelo interior do Estado e outras capitais, outros estados, expandindo esse coletivo em rede”, ressalta. “E não falta trabalho, porque é uma demanda reprimida de trabalhar com criação e difusão de histórias da comunidade sapatão”, conclui.

Quando nós estamos nos publicando, nós estamos de fato colocando no mundo a nossa versão das histórias que vivemos nesse espaço-tempo recente, não é? Isso fica e isso se espalha."
Fernanda Meireles
Artista, educadora e idealizadora do Sapato Largo

A antropóloga Isadora Gurgel explica que o fortalecimento de grupos como o Sapato Largo – e outras iniciativas para mulheres lésbicas e bissexuais do Ceará, a exemplo do coletivo Parada na Delas e de grupos como Tambores de Safo e Cola Velcro – são importantes para “mobilizar a diversidade” e combater a “normatividade heterossexista”. 

“Em Fortaleza, é possível que você envelheça como lésbica e nunca tenha vivido a experiência de se reunir com outras mulheres para partilhar memórias sobre sua infância, por exemplo, ou sobre seus primeiros desejos adolescentes por mulheres”, lamenta. 

“Não é raro me perguntarem: ‘para que fazer tanta questão de dizer que é lésbica, isso é mesmo importante?’. Eu acho que 'se dizer' lésbica – com todas as sílabas – faz parte da política pelo direito de usufruir a nossa vida em abundância”, conclui.

Para acompanhar e saber como participar das próximas ações do grupo, siga o coletivo no Instagram: @largosapato.

Serviço

Sarau de lançamento do zine “Sapato Largo”

​Quando: Quinta-feira (29)
Horário: 19h
Onde: Bistrô Toques de Luz (rua Rodrigues Júnior, 278 - Centro)