Tradutora da nova versão para o inglês de 'Grande Sertão: Veredas' detalha desafios do processo

Australiana radicada no Brasil, Alison Entrekin está à frente do projeto com apoio do Itaú Cultural e previsão de conclusão até o próximo ano

Era uma noite de frio ainda tímido em São Paulo quando Alison Entrekin levantou do assento em que assistia a uma das mesas do Conexões, evento realizado em dezembro do ano passado no Itaú Cultural. Deu um passo e logo se viu rodeada de estudantes. Acompanhados por um professor, eles soltavam gritinhos de animação: estavam diante de uma das tradutoras que mais admiravam.

“Que delícia ver tudo aquilo”, confessou-nos minutos depois, em uma das salas do equipamento. “Fico feliz com esse retorno porque às vezes a gente não tem dimensão do nosso trabalho”.

De fato, verter uma obra literária para outra língua não é tarefa das mais chamativas. Na verdade, é um ofício bastante intimista, podendo até ser lido como solitário. Alison, contudo, garante que o processo de tradução para o inglês do livro no qual tem se dedicado desde 2017 envolve mais conexões do que qualquer outra coisa.

Trata-se de “Grande Sertão: Veredas”, obra-prima de Guimarães Rosa (1908-1967). O projeto é apoiado pelo Itaú Cultural e deve ser concluído até o próximo ano. Lá fora, sairá pela Alfred Knopf (NY) e Jonathan Cape (RU).

Apesar de já ter sido traduzido para o idioma (a primeira foi em 1963, por Harriet de Onís), o título – um dos maiores clássicos da literatura brasileira – deve ganhar uma textura diferente sob a ótica de Entrekin, contratada para fazer uma espécie de correção histórica a partir de um trabalho que dê conta do que foi deixado de fora na primeira tradução. 

Australiana radicada no Brasil, Alison justifica a procura da casa. Ela tem ganhado cada vez mais destaque na cena pelo ofício irretocável junto a obras de Chico Buarque (“Budapeste”), Clarice Lispector (“Perto do coração selvagem”), Paulo Lins (“Cidade de Deus”), entre outros grandes escritores nacionais, sempre com singular alcance.

Não à toa, venceu em maio do ano passado o NSW Premier's Translation Prize, prêmio de tradução australiano. Com uma simpática timidez, a profissional conversou conosco para tecer mais detalhes a respeito do grandioso projeto que está realizando atualmente.

Proposta

Alison conta que a proposta para re-traduzir “Grande Sertão: Veredas” surgiu em 2014. À época, a agência literária que representa os herdeiros de Rosa entrou em contato com ela e perguntou se teria interesse na tarefa.

“Naquele momento, falei que sim, mas precisava ver se ia ficar satisfeita com o resultado. Até porque se trata de uma nova tradução e eu não conhecia a original”, diz. “Além disso, tinha tentado ler o livro há muitos anos sem sair do lugar, então pensei ‘bom, vamos retomar agora, com muito mais tempo de imersão na cultura e língua do Brasil… Vamos ver’”.

Neste momento, ela está com pouco mais de metade do processo concluído e suspeita ter achado a voz de Riobaldo em inglês.

“Acho que essa é a peça fundamental, isso é o que vai levando a tradução. Porque é um relato desse personagem. É oral, pra ser ouvido. É a criatividade da linguística dele que te leva pela obra. A história é boa e tem também esse encanto, então eu tive que encontrar uma forma de fazer”.

Entrekin ainda sublinha que muitos elementos no romance precisam ser recombinados na língua inglesa de forma coesa, e reitera que está conseguindo reproduzir as expressões de Riobaldo com todos os cacoetes e obsessões.

“O texto não tem uma sintaxe perfeitamente amarrada. É como se você pegasse qualquer conversa e fizesse uma transcrição: vai ver que às vezes a pessoa deixa o pensamento pela metade e já pula facilmente para outro assunto”.

Por isso, destaca que tem resistido para controlar a tendência de querer aplainar os termos, a fim de deixar o texto traduzido perfeito, polido. É um exercício de entender que, sim, as expressões saltam, há pequenas partes faltantes e isso faz parte da fala dele. “Tenho que respeitar o ritmo”.

Desafios

Assim, não são os neologismos da obra, tão conhecidos pelo público leitor, que desafiam Alison: é a sintaxe. “Ela é o bicho”, ri. Além disso, há outro aspecto muito relevante a considerar: como o título ficará em inglês sob a assinatura da nova tradutora?

Em 1963, a obra chegou ao exterior como “The Devil To Pay in the Backlands”. E agora? “Esse título é bem enigmático, me faz querer ler o livro. Nesse sentido, é ótimo. Mas pensando em termos da tradução, talvez não”. 

Segundo Alison, Guimarães Rosa, em correspondência com Harriet de Onís, dava várias sugestões de título e ficava claro que o autor era muito apegado à ideia da estrutura como no título nacional (duas palavras-dois pontos-uma palavra).

“Isso já é uma feição da própria fala do Riobaldo, com essas pausas e emendas. Então, tenho que ver isso. E também não estou traduzindo a palavra ‘sertão’. Por mais que seja ‘backlands’ em inglês, o vocábulo tem sua feição brasileira, é um local geográfico específico, então é interessante deixar isso”. 

Tem também outro detalhe: numa correspondência com o tradutor italiano, Rosa responde o que é uma vereda. A explicação tão completa fez com que Entrekin decidisse possivelmente não traduzir também essa palavra.

“Então, como é que eu faço com um título que tem três palavras, duas das quais eu não traduzo?”, pergunta-se. “E o ‘nonada’? (palavra com a qual o livro inicia). É outro caso que vou decidir como traduzir. Há vários desdobramentos dela”.

A preocupação com essas especificidades reflete muito como a profissional encara o ofício. Alison vê o tradutor como alguém que pode ter ambições literárias, mas não deve deixar sua marca na tradução.

“Tem que, na medida do possível, servir ao autor na tarefa de passar para outra língua o que ele está dizendo”, sublinha. Por isso, o desejo de, após o término da tradução de “Grande Sertão: Veredas”, escrever algo sobre essa robusta imersão. Aguardemos.

*O repórter viajou a São Paulo a convite do Itaú Cultural