Não é de hoje que Ricardo Bacelar e Cainã Cavalcante se conhecem. Amizade fecunda, a união dos dois músicos cearenses já rendeu acalorados momentos de trocas, sobretudo a respeito da arte que abraçam com tamanho vigor e dedicação.
Apesar disso, nunca haviam tocado nem gravado juntos, lacuna preenchida no último mês de fevereiro quando Cainã, em visita a Fortaleza, conheceu o estúdio de Bacelar. Lá foi selada, definitivamente, a parceria musical entre os reconhecidos instrumentistas.
Nascia “Paracosmo”, disco cujo lançamento acontece nesta sexta-feira (28) no Brasil, nos Estados Unidos e no Japão. Disponível em formato físico e digital, o trabalho elenca a naturalidade com a qual se deu o processo de gestação das músicas a fim de imprimir liberdade e ânimo por meio da transcendência.
“Aconteceu tudo de uma forma muito espontânea. Já no meu estúdio, o Cainã trouxe o violão e pediu para que tocássemos um pouco. Fomos testar o som e, nesse processo, fizemos uma música, a primeira que entraria no disco, ‘Caminho dos mouros’”, conta Ricardo.
Tendo apreciado o resultado, a dupla gravou, no mesmo instante, a canção, passando logo em seguida para a gravação de uma segunda. O intenso movimento criativo durou até o dia seguinte, quando Bacelar – à frente do piano acústico, teclados e percussão – e Cavalcante, tocando violão e baixo, compuseram e criaram cinco músicas.
“O disco foi feito, então, em dois dias – tempo em que criamos as canções e as gravamos. Depois, colocamos as percussões e os baixos. O projeto nasceu, assim, por acaso, desse encontro meu com o Cainã”.
Química fortuita
Essa profícua reunião de ambos demarcou um aspecto interessante: todas as sete músicas do disco, segundo Ricardo Bacelar, surgiram com melodias muito definidas, em um formato como o de canção. “Em algumas, dá até para colocar uma letra”, situa.
Quanto ao título do álbum, a decisão foi por uma expressão que conjugasse não apenas os anseios dos músicos ao realizarem o trabalho, mas que também dialogasse com o instante atual de ainda tanta clausura e limites.
“‘Paracosmos’ significa um mundo imaginário, uma realidade paralela. Quando a gente se encontrou pra tocar e fazer as músicas, ficamos muito à vontade e as faixas saíram naturalmente. E, como tinha todo esse aspecto da pandemia, encontramos esse oásis na música, esse local que a gente concebeu”, explica.
Desse modo, as paisagens sonoras não foram sendo buscadas – uma vez que toda a dinâmica foi tão instantânea. Os horizontes foram surgindo suavemente ao pé do ouvido, desembocando em registros que abraçam exatamente essa serenidade, ao mesmo tempo que transitam entre diferentes percursos.
A primeira faixa, “Vila dos pássaros”, é um baião cujo sonido preza pela alegria, imprimindo uma urgente vivacidade na audiência. Uma música que traz o signo da música brasileira, com a presença de muita percussão. Na sequência, “Paracosmo” possui uma levada de violão típica do de maracatu, incorporando também uma valsa muito doce e tranquila.
A terceira música, “Valsa do cansaço”, foi a última a ser feita no disco e, como o próprio título apresenta, revela uma parte do processo criativo que culminou na canção. Ricardo Bacelar lembra que já era meia-noite quando ele e Cainã, exaustos, conceberam a faixa. “Nós ligamos o gravador e ela saiu quase pronta”, diz. “Ela tem uma coisa dessa valsa brasileira, e o violão do Cainã traz também um violão meio de fado”.
“Lyle”, por sua vez, é dedicada a Lyle Mays (1953-2020), pianista americano falecido no ano passado; “Manoela” foi igualmente criada em movimento de tributo, em homenagem à esposa de Ricardo, Manoela Queiroz Bacelar, constituindo-se como um registro suave e soturno; “Berceuse” entra no repertório como uma canção de ninar, primando por uma estética minimalista, resvalando a leitura de um discurso musical bem calmo.
Por último, “Caminho dos mouros” é uma verdadeira salada cultural e de linguagens, trazendo principalmente influências da música espanhola – bem como investindo, em determinado momento, numa estética experimental, de liberdade e profusão.
“A experiência com o Cainã foi ótima, muito rica. Ele é um músico muito talentoso e criativo, maduro e polivalente, em termos de sonoridade. A química foi ótima entre nós, tanto é que em dois dias fizemos o disco todo”.
Processo civilizatório
Cainã Cavalcante reitera a satisfação de ter dividido o trabalho com Ricardo. Segundo ele, a dinâmica espontânea de como foram feitas as composições, arranjos e interpretações é um diálogo direto com o eu e o nós. “Um processo realmente civilizatório, que exige muita disposição, criatividade, respeito, e acima de tudo, muita musicalidade para chegar no instante e fazer a música acontecer”, percebe.
Ele conta que a maioria das composições foram feitas em estúdio. Bacelar tinha um pequeno fragmento melódico ou harmônico e logo o violonista desenvolvia algo, ou vice-versa. De repente, eis uma música.
“Tenho profundo carinho por todas as canções, mas escolho a composição ‘Caminho dos Mouros’ como uma que reverbera em mim. Pela construção da composição e os vários caminhos que ela toma”, explica.
“Realizar a gravação desse trabalho com todo o cuidado sanitário possível, em meio à pandemia, é um desafio e também uma vitória. Com certeza a nossa percepção e comportamento, diante da nova realidade que se apresenta, mudou. Seguimos esperançosos fazendo música e compartilhando arte”, complementa.
Agora, mediante a proximidade do disco com o público, a torcida de Cainã é para que o álbum encontre as pessoas, a fim de que elas sejam teletransportadas para a realidade paralela criada no trabalho.
“Que a música traga bons sentimentos para quem as escute. Seguimos com um trabalho firme de divulgação do disco na América Latina, EUA e Japão, torcendo para que tudo melhore logo e possamos cair na estrada para poder encontrar as pessoas e celebrar a arte do encontro”.
Novo passo
Além de apresentar o registro inaugural da parceria entre Ricardo Bacelar e Cainã Cavalcante, o disco também marca a estreia do selo Jasmin Music, capitaneado pelo pianista. A iniciativa da empreitada destina-se a gravar e lançar discos com música de qualidade, tendo como foco o mercado brasileiro e internacional.
“Eu sempre quis desenvolver um catálogo, sabe? Acho que a música está precisando de coleções, de fonogramas que sejam relevantes, que tenham uma vida útil maior e que sejam artisticamente mais relevantes”, considera Bacelar.
“A proposta do selo é desenvolver uma coleção de títulos, porque hoje, apesar de termos muita música de qualidade, as grandes gravadoras costumam investir sobretudo em produtos muito comerciais, sendo que as melhores criações ficam pulverizadas”, completa.
Para dar fôlego à iniciativa, foi montado o estúdio de gravação Jasmin Studio, cuja estrutura já vem se tornando referência na América Latina pela tecnologia, equipamentos e acústica. O projeto acústico e de design é da empresa americana WSDG Walters-Storyk Design Group, de autoria de Renato Cipriano. A direção técnica e concepção do estúdio é de Daniel Reis, com o uso de áudio por rede Dante e o sistema Dolby Atmos, com a tecnologia de áudio 3D.
“Acho que isso vai ser um ativo cultural, artístico e econômico daqui a alguns anos, uma vez que teremos uma coleção de músicas de qualidade, algo que nunca fica velho nem vai perecer. Quero chamar vários convidados para desenvolver discos em parceria, e trabalhos meus”, vibra Ricardo, contente pelo primeiro fruto do selo já ser o disco “Paracosmos”.
O projeto, inclusive, já possui duas versões em videoclipe: “Vila dos pássaros”, apresentado no último dia 30 de abril, juntamente com o primeiro single; e “Paracosmo”, também disponível no YouTube. Ambos os vídeos têm direção assinada por Lucas Dantas.
Quanto ao belíssimo encarte do formato físico, a maioria das fotos foi feita pelo próprio Bacelar durante uma viagem ao Equador. De acordo com ele, as imagens – registradas em um local com altitude bastante elevada – primam por destacar uma fauna e flora que conferem uma aura de fantasia e utopia, típicas do álbum.
“Acredito que o disco vem em um bom momento, vivemos nesse instante de tanta dor e sofrimento por causa da doença. Ele vem para acariciar as pessoas”, sublinha. “A audição dele deve provocar uma reflexão, já que é um álbum que permite um mergulho nas músicas e uma abstração”.
“Nós permitimos que as pessoas tenham um momento de interiorização, de viagem para dentro de si mesmas, de irem para esse mundo imaginário De se colocarem nesse paracosmos, que é um mundo paralelo. E há ainda as imagens dos pássaros, na capa e no encarte, dizendo que a gente pode voar e fazer qualquer coisa. É um momento de liberdade".
Paracosmo
Ricardo Bacelar e Cainã Cavalcante
Jasmin Music
2021, 7 faixas
R$ 40 (físico), também disponível nas plataformas digitais a partir desta sexta-feira (28)