Reunindo textos de não-ficção, livro “A arte de torrar café” sai em defesa da pluralidade cultural

Lançada pela Objetiva, obra passeia pela produção do cearense Ronaldo Correia de Brito para além da ficção, mergulhando em fazeres e expressões culturais como forma de dimensionar a riqueza dessa seara

Nascida e constituída múltipla, a História dos povos logo foi condicionada a narrativas de um contador só. Além de estabelecer um modelo dito padrão para se referir ao mundo – e, portanto, opressor porque vazio de diversidade – essa perspectiva abreviada de encarar as sociedades é repleta de silenciamentos. Ao limitar as polifonias, perdem-se as possibilidades de conhecimento dos fazeres e costumes de territórios profundos, pouco explorados.

Atento a essas particularidades distantes dos panoramas considerados hegemônicos, posto que concebido a partir delas, Ronaldo Correia de Brito assume em sua literatura o compromisso com as próprias raízes. De tão vastas, elas abraçam tudo – das teorias e estudos acadêmicos até o saber intuitivo, tecido de grão em grão, geração a geração. O resultado são histórias que rompem com o lugar-comum ao enxergarem, no ordinário, a real riqueza que ele possui.

Tais minúcias, bastante presentes nas obras de ficção do escritor cearense – natural do município de Saboeiro e radicado no Recife – agora se espraiam por outro horizonte. “A arte de torrar café - Narrativas além da ficção” reúne 55 textos em que prevalece o refinado olhar do literato sobre as realidades, porém num exercício de não se fixar a suporte e gênero algum. É o autor passeando por entre várias atmosferas tendo apenas como norte o simples prazer (e, por que não?, o dever próprio) de narrar.

Apesar de todas terem sido escritas antes da pandemia do novo coronavírus – na Nota do Autor, a assinatura é de dezembro de 2019 – é fácil sintonizar as produções com o instante atual, haja vista as reflexões que trazem. Nelas, pulsa sobretudo a necessidade de valorização da cultura e de pluralidade nessa seara, pensamento sempre valioso que, no presente momento, merece ganhar camadas cada vez maiores.

Diálogos com a vida lá fora

Dentro desse aspecto, reside também o vigor promovido pela obra ao singrar por tantas estradas outrora possíveis de serem livremente percorridas, não fosse a clausura compulsória em face da pandemia. Inquieto, Ronaldo sai por ruas, adentra festas carnavalescas, visita restaurantes, sobe em paus-de-arara.

Cada uma dessas travessias revela tipos e causos que vão se complexificando aos poucos, avolumando uma série de referências e ponderações. Tomemos como exemplo o texto homônimo ao título do livro. Nele, o público se vê diante de um breve olhar sobre os processos intrínsecos ao ato de escrever, ao acabamento das coisas e ao findar do tempo.

Para isso, o escritor recorre inicialmente à extinta figura das torradeiras de café e vários outros ofícios que, como narra, “se especializavam na ciência de pôr um fim”: os que assavam castanhas, os que escaldavam a coalhada para o queijo prensado, entre outros. E então vai adentrando em águas mais profundas, partindo para nomes como Coetzee e Faulkner (1897-1962),  a fim de costurar o pensamento: “Eis a pergunta que todos os criadores se fazem. O que se seguirá ao grande vazio?”. Exercício de se saber conhecedor das conexões possibilitadas pela sensibilidade.

Conforme as páginas avançam, por meio de curtos capítulos, outras esferas são abraçadas, como em “Amanhecer nas pontes”, que descortina o êxodo rural por meio de referências ao cinema e à música; “A caminho de Juazeiro”, sobre o microcosmo das romarias; “Livros e bibliotecas”, belíssimo texto a respeito do processo de descobertas de obras em brochura e da grandiosidade da literatura oral; e “O dia em que Ariano Suassuna caiu”, um dos que deve chamar mais a atenção da audiência ao narrar um pitoresco episódio envolvendo o dramaturgo, romancista e poeta paraibano.

Bem-vinda abundância

Há mais. Bem mais. Ronaldo Correia de Brito, pondo harmonicamente palavras e ideias em cada lugar, incorpora nas narrativas a atraente cacofonia de azulejos presentes na capa do livro, assinada por Daniel Trench. Diferentes e semelhantes à sua maneira, eles tecem um fluido painel de leituras, maior à medida que mais encorpado. Feito no conteúdo interno, uma vez que as histórias se entrelaçam pelo princípio uno da vontade de conhecer e registrar.

“Importa que os rabiscos virem narrativas, nunca se sabe o alcance do que vivemos, no que se transforma uma simples frase”, escreve ele. É essa capacidade de dimensionar o incerto do cotidiano por meio da ótica documental que faz dos textos um meio possível para agigantar o que importa. A profundidade de uma conversa, o silêncio de uma sinagoga, o sacolejo de um carro decrépito movido pela fé.

“Procurei alcançar, como Manuel Bandeira, um ‘sentimento íntimo do país’, e mesmo quando visito outras geografias, é no Brasil que estou e é a partir dele que falo”, prossegue suas linhas, citando Recife, Crato, Inhamuns, São Paulo, Porto Velho, o Cariri Cearense, territórios de tantos e de todos, com seus folguedos, rimas e jeitos esfomeados de vida. 

E ainda sublinha: “Sobretudo agora, quando o arcabouço dessa construção de séculos parece ruir”. Não deixa de ser um convite para manter as estruturas erguidas. E nunca, nunca fixas.

 

A arte de torrar café - Narrativas além da ficção
Ronaldo Correia de Brito

Objetiva
2021, 200 páginas
R$ 49,9