Quixadá e a comédia cearense chegam a 180 países com a série 'O Cangaceiro do Futuro' da Netflix

Produção da Netflix, série de comédia criada por Halder Gomes evoca a tradição do cangaço no audiovisual brasileiro e traz a história de um atrapalhado viajante do tempo que vai parar no sertão dominado por Lampião

"A Morte Comanda o Cangaço" (1960) foi a primeira produção cinematográfica a mostrar Quixadá para o mundo. Seis décadas se passaram, em plena era digital do streaming, o sertão cearense volta a ser admirado internacionalmente.

Produção original da Netflix, “O Cangaceiro do Futuro” chega aos lares no Natal e promete diversão para toda família. Criação de Halder Gomes, a série de sete episódios abraça um tradicional gênero do audiovisual brasileiro, o universo do cangaço. A comédia reúne viagem no tempo, história nordestina e as desventuras de um protagonista cheio de arrumação.

Conhecemos Virguley (Edmilson Filho), figura atrapalhada que sobrevive por São Paulo. Ele aproveita a semelhança com Lampião para fazer shows e sonha voltar rico para o Nordeste. Certo dia, após se meter em mais uma confusão, o herói viaja no tempo e aterrissa no Ceará de 1927. Capitão Virgulino que se cuide, pois tem cangaceiro novo chegando no pedaço.

"É uma comédia com pesquisa histórica muito elaborada. Para mim não importa só se as pessoas vão se divertir ou rir. Quero deixar algum conhecimento para quem não faz ideia do que foi o cangaço. De qual era o contexto social, político, econômico, religioso da época. Para entenderem um pouco desse universo", compartilha Halder Gomes.

Cangaceiro internacional

A comédia filmada em chão cearense ganhou tradução nos mais de 180 países em que a gigante do streaming. Nos EUA, por exemplo, "O Cangaceiro do Futuro" ganhou o título de "Time Hustler". Já imaginou esse tanto de cearense talentoso dublado nas mais distantes línguas e nacionalidades?

Além de Edmilson Filho, a produção reúne uma trupe que brilha em outros trabalhos do criador de Cine Holliúdy. O riso rola solto com Haroldo Guimarães, Solange Teixeira, Carri Costa, Valéria Vitoriano, Max Petterson, Amadeu Maia, LC Galetto, Bolachinha, Chandelly Braz, Dudu Azevedo, Frank Menezes, Fábio Lago, Evaldo Macarrão, entre outros nomes.

Outro destaque é o cineasta Glauber Filho, que dirige três capítulos e amplia a parceria com Halder Gomes. Além de abraçar o contexto social daquele período, o rigor estético na reconstituição dos figurinos contou com o trabalho da pernambucana Chris Garrido.

Teve toda essa preocupação de ser uma reconstituição de época muito fiel. É o mesmo ambiente, o mesmo lugar, o mesmo universo, os mesmos figurinos, mesmas vivências. Se você trocar o drama pela comédia, é o mesmo lugar. E isso é muito interessante. Até porque, imagino que dentro do cangaço existiu comédia. As pessoas não só trocavam bala o dia todo, a vida toda. Em algum momento alguém riu".
Halder Gomes
Diretor

E este cenário permite a condução do humor, lançando um homem do presente no perigoso sertão dos anos 1920. Virguley (que é filho de Seu Virgulino mais Dona Leydinha) é confundido pela população como o verdadeiro Lampião. Para tirar vantagem da farsa, ele reúne um bando inusitado, se apaixona por Mariá (Chandelly Braz) e fica cheio de marra na fictícia Catingueiras. 

Cangaço e Faroeste

Para Halder Gomes, o sertão filmado por suas lentes ainda guarda muitas semelhanças com o tempo onde os cangaceiros reinaram. Em essência, afastando a atual tecnologia e as políticas públicas, continua visualmente esse lugar difícil de habitar, inóspito, quente, com vegetação dilacerante.

"Com essa estética muito bonita de se ver, mas muito quente e avassaladora de se estar presente. Então, essa comédia se insere nesse lugar que é brutal. Nesta realidade tão difícil extraímos a comédia desse encontro. Desse cotidiano e personagens daquele vilarejo", defende o realizador.

Em 2022, o diretor encabeçou uma série de projetos. Concluiu as filmagens da terceira temporada de Cine Holliúdy, lançou seu inédito longa "Vermelho Monet" em festivais de Lisboa e Recife e ainda emplacou "Bem-Vinda a Quixeramobim" (com mais de 70 mil espectadores). Com tantas obras desenvolvidas para diferentes plataformas, o que "O Cangaceiro do Futuro" amplia no horizonte criativo do cearense?

"Falar do cangaço, primeiro de tudo. Porque talvez seja o maior assunto cultural que temos no Nordeste. Os maiores ícones culturais, o legado que vem disso tudo através da literatura, culinária, da estética, do teatro, da literatura, do cinema. É muito rico. Acho que para nós, seria equivalente para o americano como o 'Velho Oeste' ou 'Vietnã'. Da possibilidade infindável de boas histórias".

Assim, filmar este cangaço é também se inspirar nas estéticas que o faroeste proporcionou no cinema. A narrativa épica, os enquadramentos, o uso das lentes anamórficas e aquela visão CinemaScope que enche a tela. Tudo isso integrado à beleza que o sertão oferece.

"E você poder olhar para isso na comédia, mas vê ali uma referência visual que dialoga com aquelas filmagens de Benjamin Abraão, autêntica do bando de Lampião. Aquelas imagens são muito poderosas, quando eu vejo aquilo ali, 'caramba', que coisa poderosa, que imagens fortes. É Uma peça histórica muito importante", descreve o cearense.

Quixadá do cinema

Após ambientar "A Morte Comanda o Cangaço" (1960), a Terra da Galinha Choca voltaria a ser locação no cinema com "O Cangaceiro Trapalhão" (1983). A obra protagonizada pelo quarteto humorístico foi filmada em Juatama, distrito de Quixadá.

Naquela ocasião, o município cearense se firmava na filmografia brasileira que abraça as vivências dos cangaceiros. Em sua tese de doutorado, o pesquisador Marcelo Dídimo descreve que o cangaço foi retratado no cinema nacional em várias épocas e por diversas formas.

Desde a década de 1920 a temática fascina cineastas e espectadores. O cangaço passou a ser bastante explorado na sétima arte a partir dos anos 1960, mas, aponta Dídimo, surge como gênero tipicamente brasileiro em 1953, quando Lima Barreto realiza "O Cangaceiro". Nascia o chamado "Nordestern".

"É um neologismo criado pelo pesquisador Salvyano Cavalcanti de Paiva na década de 60 e foi atribuído aos diversos filmes realizados sobre o cangaço nesse período. Este termo é uma referência direta ao western clássico que muito influenciou os filmes de cangaço a partir dos anos 50", descreve o estudo. 

"O Cangaceiro do Futuro" retoma toda uma tradição que faz parte da história de Quixadá. A cidade continua efervescente no mapa do audiovisual brasileiro e consolida o bom momento com a estreia internacional da Netflix. Para o diretor, é orgulho um projeto desta dimensão acontecer no Ceará. Unindo impacto econômico, cultural, turístico e artístico.

Remete ao início da carreira no audiovisual, quando ele sonhava com uma Hollywood em casa para não ter que deixar a terra natal. "Quixadá tem esse privilegio de ser um lugar abençoado por essa beleza única, com muitas possibilidades, mas também é um lugar de acesso fácil, com boas estradas, com infraestrutura hoteleira e alimentícia capaz de atender um grande projeto. Fatores que se agregam aos fatores naturais", finaliza Halder Gomes.