Momento passageiro e precioso, a vida é colcha espessa composta de inúmeras experiências. Há aquelas que nos levam para a frente, sempre lembradas com sorriso no rosto; e outras cujas complicações desafiam nosso estado de equilíbrio. É um movimento natural, fruto dos inconstantes processos da existência. Contudo, é preciso aprender a conviver com as diferentes etapas desse caminhar para mantermos a serenidade diante de cada novo obstáculo.
Neste instante nebuloso da história mundial, a necessidade de pensar sobre essa questão e dar real importância a ela torna-se ainda maior. Tudo acontece com muita velocidade em tempos de pandemia do novo coronavírus. Desde a confirmação da primeira morte provocada pela Covid-19 no País – em 17 de março, no Estado de São Paulo – um singular capítulo começou a ser escrito nas jornadas de cada um. Passamos a lidar com algo invisível e todas as duras consequências que isso trouxe.
Até mesmo a maneira de nos despedirmos de pessoas queridas, acometidas ou não pela doença, recebeu um impacto. A fim de assegurar a proteção, as tradicionais cerimônias de adeus deixaram de acontecer. Num cenário em que, diariamente, o número de óbitos só aumenta, tal realidade pode provocar distintas e sérias reações nos indivíduos, fragilizados pelo conturbado panorama.
Segundo o psicólogo clínico Tom Trajano, o luto está ligado a várias causas.
“Esse sentimento pode ser definido como uma reação física e emocional de uma pessoa que perdeu um ente querido ou mesmo um emprego ou um relacionamento afetivo, de tal forma que ela sente um baque emocional, uma dor muito forte, podendo comprometer, inclusive, o aspecto físico e relações sociais”, explica.
Nas palavras dele, o luto é o tempo que o coração precisa para se adaptar diante de uma dor da perda. E ele é muito particular, variando de pessoa para pessoa, sendo muitos os fatores que interferem nesse estado.
“Há indivíduos que fazem o que chamamos de luto saudável. É quando existe o sentimento de dor, mais ou menos profundo, mas se consegue desenvolver outras atividades da vida. Por sua vez, no luto adoecido, a pessoa paralisa. Ela não consegue nem trabalhar nem realizar outras ações. Ou, se consegue, é com muito prejuízo na qualidade. Normalmente, ele tende a se estender um pouco mais”, situa.
Impressões
Fato é que essa reação não tem um tempo preciso, dada a subjetividade de cada ser humano. Tecnicamente, contudo, acredita-se que em até dois anos as dores internas continuam acontecendo.
Segundo Tom, “inexoravelmente, passamos e passaremos por diversos momentos de perda, de finais de ciclos, e é comum vir esse sentimento. Faz parte, inclusive dentro de um processo de subjetividade mesmo saudável. O que acontece agora é o cerceamento da nossa liberdade de ir e vir, ou seja, a quarentena por conta da pandemia. E isso gerou um impacto, essa ruptura, que desencadeou em muitos a não-aceitação, primeira fase do luto”.
Junto à dificuldade de integrar essa realidade de reclusão para evitar a transmissão do vírus, pode vir o sentimento de revolta. Irritabilidade, complicações para dormir e estabelecer uma rotina, além de índice de ansiedade muito elevado e frequente inquietação, entre outros comportamentos, são possíveis características desses estados.
“A imposição necessária da quarentena pode ter gerado realmente esse luto. A pessoa se revolta e se desgasta tanto, que entristece. Geralmente, esse entristecimento é resultado do exaurimento de energia que eleva a ansiedade por conta do medo e, em alguns casos, leva até a um transtorno de humor chamado depressão, tão comum em tantas pessoas”, detalha o psicólogo.
Ressignificação
Quanto ao impacto no rito tradicional de despedida dos mortos que deixamos de ter por conta da pandemia, Tom Trajano enfatiza ser necessário encontrar uma forma de ressignificação do luto.
“A cerimônia de velar o corpo tem uma função simbólica, subjetiva, muito importante. É o momento da despedida íntima. Inclusive, independe de religiosidade. E, nesse contexto que estamos vivendo, no qual isso não acontece ou apenas com poucas pessoas, gera um prejuízo, realmente uma dor. As pessoas vão precisar ressignificar”.
Tom destaca ainda ser relevante considerar o fato de que alguns indivíduos necessitam de ajuda terapêutica para esse processo, com vistas a não gerar danos psíquicos. Algumas atitudes, porém, acenam para possibilidades concretas de superação.
“Num parecer muito meu, particular, se as famílias puderem, até mesmo virtualmente, ter um momento de encontro, ajudaria muito. Cada pessoa individualmente dedicaria um tempo para se permitir chorar, expressar suas emoções em comum. Se o grupo familiar não tem essa abertura, pode-se, sozinho, fazer uma oração, prece ou mesmo um desabafo. Escrever uma carta de despedida e depois queimá-la seria uma maneira simbólica de fechamento de ciclo que, no caso, corresponde ao tempo de convivência com aquela pessoa”.
Novos sentidos
Tendo o universo um movimento próprio, quando algo acontecer e não pudermos fazer nada para modificá-lo, a mudança precisa ser interna: isto é ressignificação, ou seja, estabelecer novo significado diante de uma situação particular.
Na visão de Tom Trajano, à nível de estruturação psicológica, duas podem ser as reações diante de um panorama. O indivíduo mais estruturado lida com a realidade – alegrias, tristezas, prazeres e sofrimentos – sem uma auto-desorganização. Olha, observa aquilo que está vivendo, percebe o que não dá para fazer além de aceitar, e vai tentar ressignificar.
“Por sua vez, a pessoa menos estruturada tende a não aceitar. Ela quer que a realidade se modifique de acordo com o desejo, modo e tempo dela. Assim, terá mais dificuldade de conviver no novo cenário e, portanto, se desorganiza internamente”, descreve o psicólogo.
Como meio de driblar essa desorganização mental, a forma mais saudável de viver é estarmos inteiros no aqui e agora, focados no que Tom Trajano define como vivência plena.
“Quanto mais nos dedicarmos ao momento presente, mantendo o pensamento nas ações que estão sendo realizadas, mais poderemos observar o impacto daquilo que estamos fazendo dentro de nós, se nos faz bem ou não. Passamos a nos conhecer”.
É fato que nem sempre teremos essa clareza. Afinal de contas, o indivíduo vai se construindo ao longo da vida e as escolhas equivocadas, não tão coerentes, fazem parte da estrada. Todavia, o esforço de tentar dar o melhor de nós, cultivando uma visão indulgente de si mesmo, ou seja, se assumindo humano, com falhas e potencialidades, é fundamental.
“Algumas práticas podem otimizar o fortalecimento da mente. A meditação é uma delas, bem como atividades físicas, o lazer saudável, nutrir-se de uma espiritualidade e a manutenção de uma teia social sadia, que implica diretamente na qualidade das relações”, aponta o psicólogo.
Além disso, superar o tabu e procurar ajuda psicológica ou psiquiátrica profissional em um instante difícil como esse, caso haja bastante desconforto, não é fraqueza, mas sinônimo
de autocuidado. “Se você perdeu um ente querido, procure manter essa pessoa da forma mais alegre na memória. Mantenha esse vínculo com ela no dia a dia na certeza de que se, em algum momento não lembrar da pessoa, não significa dizer que não a ama, mas que pode continuar a vida certa de que aquele alguém quer que você sempre esteja bem”.