Programa 'Trans e Travesti na Técnica' busca impulsionar empregabilidade no setor cultural

Projeto independente de Fortaleza busca reduzir desigualdades e preconceito de gênero

Há cerca de cinco anos, antes de se entender como uma pessoa não-binária, Caru Faaca decidiu participar de um grupo que incentivava a participação de mulheres nas áreas técnicas da cultura. Na época, Caru já atuava em diversas funções de backstage no cinema e no teatro, e sabia da necessidade de fortalecer esse movimento – mas, com a compreensão de identidade de gênero, veio a percepção de que o coletivo ainda precisava avançar em relação à inclusão de pessoas trans. 

“Eu vi que ali só tinham pessoas cis, praticamente, e senti essa falta, esse desejo de agregar todos os tipos de pessoas ao trabalho, à coletividade”, explica. Assim surgia um incômodo que, algum tempo depois, daria origem à ação: o desenvolvimento do programa Trans e Travesti na Técnica, idealizado por Caru, que visa a inserção de pessoas trans e travestis em todos os setores da cultura cearense.

A vontade de criar um projeto que unisse formação e empregabilidade para uma parcela da população que é constantemente negligenciada, claro, encontrou percalços. Depois de muitas negativas e frustrações com editais, só neste ano Faaca conseguiu organizar a primeira experiência de trabalho coletiva, contratando dez pessoas trans – a maioria delas em situação de vulnerabilidade – para serviços de desmontagem de uma exposição na Pinacoteca do Ceará, na Capital.

Durante alguns dias, o grupo executou, muitos deles pela primeira vez, uma série de funções técnicas. Além do pagamento das diárias de trabalho, alimentação, EPI e dinheiro para o transporte, o aprendizado foi parte fundamental do processo: afinal, a ideia do projeto, explica Caru, é garantir uma redistribuição de renda, mas também formar novos profissionais e ampliar a rotatividade de trabalhadores do setor cultural.

Isso porque, para Faaca, há uma limitação nas contratações: segundo sua análise, quase todos os projetos culturais têm os mesmos fornecedores e profissionais atuando, o que impede a segurança financeira e a progressão de carreira de quem não está inserido em um seleto circuito.

“Se a gente teve dez filmes feitos na pandemia, as mesmas pessoas fizeram esses dez filmes, enquanto outras ficaram passando fome”, destaca. “É um cenário de Fortaleza e do Ceará. As pessoas não acreditam nas outras pessoas, só querem trabalhar com quem já conhecem ou já confiam de alguma forma, e não dar oportunidade para outra pessoa se expandir, nem passar conhecimento”, completa.

Outro problema, segundo Caru, é a burocracia para que os técnicos recebam. Como, por vezes, as instituições contratantes demoram a realizar os pagamentos – 30, 40 dias –, é preciso pegar um empréstimo para garantir que todos sejam remunerados em tempo hábil, o que dificulta contratações e inviabiliza outros avanços.

Prioridade para pessoas em situação vulnerável 

Em meio aos desafios, as quase duas décadas de experiência em funções técnicas da cultura ajudaram Caru a pensar em uma forma de horizontalizar as demandas e dividir as oportunidades que surgiam. Atualmente, o plano é, à medida em que as oportunidades surgirem, contratar profissionais trans diversos, priorizando pessoas periféricas, em situação de rua ou egressas dos sistemas socioeducativo e penitenciário.

Mesmo com trabalhos ainda escassos, Faaca tenta fortalecer a ideia por meio do mapeamento de profissionais disponíveis para os serviços – atualmente, cerca de 40 pessoas –, de publicações nas redes sociais e da utilização do nome do programa nas fichas técnicas onde desenvolve trabalhos em parceria com colegas trans e travestis. “Se oferecem um serviço para mim e eu vejo que cabe mais um assistente, dois, três, eu chamo de Trans e Travesti na Técnica”, pontua. 

Além do trabalho manual, o programa também inclui debates constantes sobre temas que engrandecem a trajetória dos trabalhadores e estimulam o pensamento crítico – algo inegociável para Caru. 

“A gente conversa sobre consciência de classe, sobre educação bancária e por que estamos nessa situação”, ressalta. “Porque a gente precisa quebrar a máquina de alguma forma, entregando esses trabalhos com excelência, que é a única coisa que a gente tem. Então, há sempre essa conversa, e também uma autovalorização da pessoa profissional”, conclui.

No momento, o projeto busca oportunidades de forma independente. Profissionais ou interessados trans e travestis que queiram participar do mapeamento e do banco de trabalhadores da técnica podem se cadastrar neste link.

Novas possibilidades

Para quem busca aproximações com o setor artístico e formas de obter renda, as áreas técnicas são uma ponte possível. Foi através delas, em um trabalho mediado pelo programa, que o garçom e cuidador de idosos Francisco Lesk Barbosa, 27, conseguiu avistar novas possibilidades.

Há tempos, o jovem demonstrava interesse pelas artes; estudou teatro por anos, mas nunca conseguiu trabalhar ativamente no segmento, nem participar dos raros cursos disponíveis para qualificações profissionais. A desmontagem da exposição na Pinacoteca, portanto, foi a primeira experiência profissional junto à cultura. 

"Nós, pessoas trans, sempre somos vistas como pessoas marginalizadas. As pessoas esperam que a gente esteja ocupando certas posições na sociedade, de uma forma bem subalterna", pontua. "Então, ter participado do programa, para mim, foi muito importante, porque através dele eu tive o convite para trabalhar em outros projetos. Hoje em dia, na parte técnica, tenho feito alguns trabalhos como iluminador", conta.

Além da renda extra, o técnico destaca que descobrir um novo trabalho possibilitou que enxergasse, em si mesmo, “novas potências” em áreas diferentes das quais estava acostumado. Mas mesmo quem já atua na cultura pode aproveitar a mediação do Trans e Travesti na Técnica para traçar outros caminhos.

Esse foi o caso do produtor cultural e arte-educador Tiê Rocha, 31. Tiê, que também é cientista ambiental, conheceu o projeto no Instagram e viu naquela ideia uma possibilidade de fortalecer vínculos com outros profissionais trans que atuam na cultura, especialmente nas áreas técnicas.

Mesmo com capacitação técnica com comprovação de cursos e certificados, não concorremos de igual para igual com a cisgeneridade. Os processos de cotas não são suficientes quando falamos de uma população que tem os maiores índices de abandono escolar, então são poucos os profissionais trans e travestis que terão esses certificados para apresentar nas seleções públicas."
Tiê Rocha
produtor cultural e arte-educador

Com o grupo, atuou na desmontagem de uma exposição e, depois, teve oportunidade de fazer o caminho contrário, pensando e atuando na montagem de outra mostra.

"Uma exposição é criação coletiva entre artistas e técnicos, que são também artistas, e esse reconhecimento também é preciso e precioso", destaca Tiê. Atualmente, o arte-educador trabalha especialmente com montagens e desmontagens, manutenção e estruturação de jardins, hortas e viveiros e consultoria técnica para projetos ambientais e educação ambiental. 

Esperançoso, Tiê conta que acredita em um caminho de expansão para trabalhadores das áreas técnicas no Ceará, e afirma que deseja atuar, também, no fomento a ações voltadas para a comunidade trans do setor.

"O Ceará é território que borbulha na produção de arte e cultura nos mais diversos campos e haverá cada vez mais oportunidades de trabalho nas áreas técnicas. Desejo ver isso redistribuído e pensado para as periferias e para corpos dissidentes", ressalta. "Mas é importante lembrar que, sem políticas públicas e sem comprometimento social, serão apenas sonhos de uma classe trabalhadora que ainda esbarra em desigualdades estruturais", conclui.

Pessoas trans e travestis no centro do debate

A necessidade de se criar projetos e, principalmente, de aprimorar políticas públicas de empregabilidade para as pessoas trans em todos os setores surge de uma realidade que vai muito além do segmento da cultura em Fortaleza ou no Ceará.

É o que explica Silvia Cavalleire, presidente nacional da União Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (UNALGBT). "Os avanços ainda são muito poucos perante o tamanho das dificuldades que são enfrentadas e são poucos os exemplos de sucesso que nós temos", lamenta a ativista. 

"O mercado acompanha as nossas situações de vulnerabilidade e sabe que, se oferecerem baixos salários e oportunidades temporárias, nós vamos aceitar, porque estamos necessitando de dinheiro rápido e fácil", completa.

Na capital cearense, o cenário de extrema vulnerabilidade que afasta as pessoas trans de trabalhos formais ou com maior remuneração é reforçado pelas condições das poucas oportunidades que surgem. Em sua maioria, são trabalhos pontuais, sem segurança ou direitos trabalhistas, segundo Silvia. 

"É uma população que precisa periodicamente apostar em novos trabalhos, novas formas de renda para sobreviver, o que não é ideal, porque isso precariza a produtividade e também dificulta com que essas pessoas conquistem empregos fixos no que elas se propõem a atuar", reforça.

A presidente da UNALGBT explica que mesmo em setores que parecem mais abertos a diversidade, como a cultura, ainda há poucas pessoas trans e travestis. "Seja como artistas ou como membros e membras das produções culturais, são números muito pequenos, pouco valorizados, com poucas chances de convites para atuarem em trabalhos relevantes", lamenta. 

Para Silvia, hoje já há medidas que incentivam a participação de equipes mais diversas, como a Lei Paulo Gustavo, mas o debate ainda é insuficiente e o caminho, longo. 

"É preciso fazer todo um debate, toda uma discussão que envolva desde gestores de cultura, movimentos culturais, empresas especializadas na produção de eventos e discutir com todos esses setores para que a cultura deixe de refletir valores antitrans e possam incluir essas pessoas de fato, não apenas por retórica", conclui. 

A conversa, porém, não pode ser feita de forma hierarquizada, sem a participação de pessoas trans e travestis, nem pensada como algo temporário.  

"É preciso oferecer espaços para que a população LGBT+, sobretudo pessoas trans e travestis, tenham direito a voz, tenham direito de serem ouvidas nas suas angústias e possam também colaborar", lembra Silvia. "Não é só os outros pensarem como irão nos incluir, mas também pensar em como oportunizar que nós possamos colaborar com a nossa própria inserção", conclui.

Serviço
Trans e Travesti na Técnica

Acompanhe o projeto: @t.t.natecnica
Formulário para mapeamento de profissionais trans e travestis