2020. Na noite de 15 de março, o Ceará registrou os três primeiros casos da Covid-19. Naquele domingo, um dos últimos eventos com público em Fortaleza era realizado. O show da banda sueca The Hellacopters contou com a produção de Maurílio Fernandes. Na ocasião, o músico e realizador previa (e temia) uma reação em cadeia preocupante.
Um ano depois, algumas destas estimativas se confirmaram. "Fomos os primeiros a parar e seremos os últimos", argumenta. No entanto, muito desse drama foi ainda maior do que o imaginado. “No início da pandemia vimos a luta por saúde. Com o passar do tempo, percebemos que o mundo virou político e não tinha nada a ver com saúde e proteger vidas. Só política”, critica o realizador. À luz dos dias atuais, o entrevistado avalia como “desumano”, o tratamento dado pelos gestores públicos para o setor.
Com a necessidade do isolamento social rígido, para frear a transmissão do vírus, centros culturais, museus, cinemas e teatros paralisaram as atividades. O contraponto para reverter o quadro partiu de ações objetivas da própria classe. Ações solidárias arrecadaram cestas básicas e ajudaram a pagar contas de água e luz. Quem esteve desde março nessa batalha foi o Sindicato dos Músicos Profissionais no Estado do Ceará (Sindmuce),
Algumas cenas ainda estão na memória, descreve o diretor do Sindmuce, Daniel Domingues. Ele comenta algumas situações vividas durante a entrega das cestas básicas. "Um fato marcante foi minha ida a um município e lá, vi um recém-nascido tomando 'água com maizena'. Ele, filho de uma cantora. Vi também um sanfoneiro andar 17 km para pegar uma cesta. É muito sério. Babau do Pandeiro esteve aqui em casa. Cara... Ele não conseguia segurar a cesta. Levei ele até a parada de ônibus. Para colocar ele dentro, com a cesta básica dele."Infelizmente, essa é a situação", avisa.
O iluminador cênico, Marcos Alexandre, define o período como “caótico”. “Em 2020, as pessoas ainda conseguiam se mobilizar nos movimentos e ações. Agora, ficou crítico para todo mundo. A perspectiva que eu tenho é incerta”, divide.
Ainda de acordo com Marcos Alexandre, a união dos amigos que lidam com o teatro amenizou o ambiente insalubre das semanas. “Fiquei surpreso quando vi um colega chegando na porta da minha casa, de carro, como um voluntário. E trazendo a cesta básica para mim. Isso me deu um afago muito grande como artista, de saber que estávamos juntos e pensamos uns nos outros. Não é um, são vários profissionais que estão em casa, desesperados, sem saber o que fazer e o que pensar”, revela.
Um alento, descreve, foi justamente o instante no qual pode exercer a função que tanto ama. Se as atividades pararam em março, somente em novembro, o cenotécnico voltou a realizar um trabalho.
“Tive a oportunidade, mesmo com a pandemia, de participar do Festival Internacional de Circo do Ceará. É um evento que trabalhamos a bastante tempo. Vendo todos os outros festivais parados, eu estava temeroso. Mas, conseguimos exercer um trabalho super tranquilo, que nos deu um alívio financeiro no final do ano. Foi muito bom viver aquilo depois de muitos meses”, completa.
Constatação semelhante é descrita pelo músico, ator e produtor Orlângelo Leal. Também só em novembro, ele teve a primeira chance de trabalhar com presença de público desde o início da pandemia. Para quem é acostumado a realizar algo em torno de 70 apresentações por ano, estar na 18ª Mostra de Teatro Transcendental com a peça “Ch@afurdo” foi um instante único naquele ponto da carreira. Dois sentimentos estiveram juntos, recorda o artista.
"Tive uma alegria e tristeza ao mesmo tempo ano passado. Saí de casa feliz. 'Nossa, vou fazer um espetáculo ao vivo. Faz um ano que não faço show'. Quando chego lá, todos estavam de máscara. E nós, fazendo um espetáculo de comédia/humor, não víamos as bocas das pessoas sorrindo. A não ser os olhos, semiabertos. Era o que tínhamos de retorno do público. Essa máscara que veda. Não sabemos se ela está rindo, cantando. Foi um pouco traumatizante. Mas, ainda bem que teve esse show. Deu uma salvada”, divide.
Quando voltar?
Cirio dos Santos Brasil é artista circense, nascido e criado debaixo de uma lona de circo. Nestes 12 meses, a dúvida e o medo incomodaram pesadamente. Qualquer previsão, agora, guarda viés desanimador.
“O que mais machuca, nós do circo, é ver nossas crianças, nossos jovens, sem exercer a profissão. Sem trabalhar no picadeiro. Ficamos nos perguntando ‘quando vamos retornar?’. Essa pergunta é a mais difícil que tem. Infelizmente, amigos nossos estão adoecendo, pessoas próximas estão perdendo a vida. Não podemos fazer nada. Somos impotentes. Vemos as crianças querendo algo e não podemos comprar, pois estamos sem poder trabalhar. O circo vive do público”, divide
"A Lei Aldir Blanc veio para dar uma força, mas em questão de se manter, estamos nos virando. Lá pra março, abril, a comunidade se uniu e veio deixar cestas básicas, material de limpeza. De novembro para cá, as coisas estão piores. Estamos esquecidos. Estamos pelejando, vendendo uma coisa ou outra para poder sobreviver", descreve.
Reinventar na pandemia
Profissional do meio musical, a produtora Sylvia Sussekind, descreve o quanto foi problemático testemunhar pessoas da área perdendo tudo. Nesse intervalo, muitos foram os episódios desanimadores. Amigos precisaram se desfazer dos poucos bens. Outros foram postos na rua por não poder pagar aluguel.
"Sem ter shows e festivais, tivemos que nos reinventar. Foi tempo de tentar ser mais criativo. Trabalhando com assessoria de imprensa, marketing digital, outras formas de divulgar os grupos do selo. É difícil quando você faz isso a tanto tempo e ama isso. Fica mal sem saber o que vai acontecer e como será o futuro. 2022 promete ser o ano igual. Principalmente para quem é da cultura, pois a vacina não virá tão cedo", acrescenta a entrevistada.
Outro marco negativo, descreve Sylvia, é perceber uma população alheia ao cenário dramático do País.
"Fico no estado de choque. Penso como vou voltar para o setor no dia que tiver o primeiro evento grande, de massa. Acho que vou ter crise de pânico. Ver pessoas aglomeradas em festas de réveillon, Carnaval, isso me choca. Deixa mal e bate mais o desespero de pensar 'até quando vamos nessa'? Até quando vamos fazer isso com o próximo? Quando fazem isso, ajudam a matar mais gente”, alerta a trabalhadora.