Como a música brasileira retrata a mulher? O tema voltou ao debate após uma fala de Chico Buarque ganhar proporções polêmicas. O músico não tem mais interesse em cantar “Com Açúcar, com afeto”. Para o compositor, a obra não combina com os tempos atuais e vida que segue.
A atitude de rever o próprio conceito não chega a ser uma exclusividade do consagrado artista carioca. Em 2019, um show em Fortaleza com Sandy e Junior ganhou repercussão nacional por um episódio semelhante. Na ocasião, o público cearense ensaiou cantar “Maria Chiquinha” durante uma pausa da apresentação.
A dupla chegou a acompanhar o entusiamo da plateia, mas em determinada parte da música, o irmão Junior refletiu que a letra continha um detalhe questionável. "Isso não é mais aceitável, não são mais os anos 1990”, defendeu.
Explica-se. Na letra, o personagem Genaro acusa a protagonista Chiquinha de ser infiel e chega a dizer que vai “cortar a cabeça dela” e “aproveitar o resto”. Assassinato e necrofilia. O que poderia ser tema do Cannibal Corpse, no Brasil, foi sucesso entre a criançada. E pelo visto, continua na memória dos adultos.
“Por trás de toda música ‘inocente’, o reflexo de uma sociedade machista”. Esse é o lema do site “MMPB – Música Machista Popular Brasileira”. Desde 2018, o projeto propõe um rico debate acerca das mensagens dirigidas às mulheres nas canções. A plataforma foi pensada por Rossiane Antúnez, Carolina Tod, Lilian Oliveira e Nathália Ehl.
Cerca de 100 obras já foram analisadas pela iniciativa. Apesar do título, a seleção reunida na plataforma abraça vários segmentos sonoros como rock, funk, forró, sertanejo, pop, rap,samba etc. “Não é sobre censura. É sobre uma evolução muito necessária”, conta uma das idealizadoras do MMPB, Lilian Oliveira.
Atualmente, Lilian e Rossiane seguem à frente da iniciativa e o site também ganhou conta de Instagram. A missão é incluir e discutir outra leva de músicas futuramente. Diante do repertório observado, Lilian descreve um perfil dos dados que o site reúne.
"Não tem um ritmo que seja mais perigoso, o que vimos não é sobre ritmo ou temática. Como tentamos analisar músicas antigas e novas, percebemos uma linha de tempo, que acontece conforme as conquistas das mulheres ao longo das décadas”, destaca Lilian.
Perfil das obras
Se nos anos 1950, a figura da dona de casa é cantada a partir de letras punitivas e com apologia à violência física, esse cenário ganhou outro contorno, indica. “Depois dos 1980, a mulher conquistou maior liberdade, de ser mais livre sexualmente do que era antes. Meio que nessa época começa a aparecer o conteúdo de violência sexual".
Lilian cita o caso da banda gaúcha Os Cascavelletes. Um dos trabalhos do grupo se chama "Estupro Com Carinho" e a entrevistada conta que essa faixa, segundo relato de leitoras do MMPB, era comum tocar em festinhas de aniversário da criançada.
Outras duas músicas, cujo conteúdo causou preocupação, foram citadas por Lilian. São “Faixa Amarela” e “Nosso Sonho”. Popular na voz de Zeca Pagodinho, a primeira começa como um conto de fadas e logo ganha contornos de ameaça: “Mas se ela vacilar. Vou dar um castigo nela. Vou lhe dar uma banda de frente. Quebrar cinco dentes e quatro costelas”, cita o verso.
Gravada em 1996 por Claudinho e Buchecha, “Nosso Sonho” traz um misto de sentimentos, relata Lilian. Ela sempre cantava o hit, mas só anos depois percebeu o contexto problemático do material. “No começo não tem nada de mal. É o cara curtindo o baile e lá para o final ele solta: 'Mas tudo isso porque eu me sinto coroão. Tu tens apenas metade da minha ilusão. Seus doze aninhos permitem somente um olhar'. É um homem adulto falando de uma menina!", questiona.
Assim, por meio do universo musical, o MMPB insere o debate de uma pauta necessária, estipula a criadora. Mesmo assim, a tarefa continua sendo árdua e o recente caso envolvendo Chico Buarque afirma este cenário complexo. Por meio da arte é possível emitir alertas necessários.
"Algumas pessoas não querem entender, já levantam a palavra 'censura'. Quanto mais óticas, melhor, precisamos ser mais safos e inteligentes para entender a maneira de trazer mais gente para o debate. É olhar o passado para construir um futuro. Falar do tema sem ser pesado, elitista. Todo mundo gosta de música, não tem como”, conclui Lilian Oliveira.
Território do forró
Professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Felipe Trotta é autor dos livros “O samba e suas fronteiras: ‘pagode romântico’ e ‘samba de raiz’ nos anos 1990” (2011) e “No Ceará não tem disso não: Nordestinidade e macheza no forró contemporâneo” (2014).
Este último começou a ser produzido em 2007, período em que o carioca morou em Recife. À época, trabalhava na Universidade Federal de Pernambuco e a ideia inicial era estudar repertórios musicais da região. O frevo foi cogitado, mas o forró passou ser o objeto de estudo.
Felipe aponta que antes de acusar o forró ou qualquer outra expressão musical, é preciso refletir que o machismo é um problema encravado na sociedade brasileira.
“É machista até hoje, mesmo que atualmente vejamos com bons olhos, inclusive, um movimento muito forte de questionamento do patriarcalismo e machismo de modo geral”, reflete.
Em “No Ceará não tem disso não: Nordestinidade e macheza no forró contemporâneo”, o mote, conta o docente, é a conexão entre nordestinidade e uma certa ideia de masculinidade. Diferente do machismo, discute a idealização de um tipo masculino nas músicas e o repertório que se associa naturalmente à prática do forró.
Antes, o autor contextualiza que a identidade nordestina é um marco importante no imaginário do forró. Está no formato “tradicional”, que se consolidou como uma espécie de porta-voz nos anos 1940 (especialmente a partir da obra de Luiz Gonzaga) como no “eletrônico” (que nos anos 1990 indicou a modernização no ritmo ao aproximar-se da urbanidade e representações tecnológicas).
“A importância da nordestinidade na elaboração e construção simbólica do forró caminha junto com o tipo de nordestinidade que é estereotipado, mas que está muito fundado na figura masculina, num tipo ideal masculino. Atravessa vertentes mais pop, intelectualizadas, sertanejas, sempre o tipo másculo, ativado como eixo de construção imaginária de Nordeste e forró”, considera o pesquisador.
Mudanças
Felipe descreve que durante o processo de pesquisa para a publicação, identificou certas mudanças de paradigma entre os grupos de forró contemporâneo. “Tinha um protagonismo feminino muito forte, mulheres que ativavam narrativas de desejos, de querer ir para festa, se divertir, de questionar o parceiro. ‘Foi macho na hora da cama, mas não é para pagar as contas’, compartilha.
Contudo, pondera, dentro de um ambiente machista, com uma lógica patriarcal. “Não dá para generalizar, pois, isso é colocado com uma estrutura de palco que tem obviamente a objetificação das mulheres, as dançarinas, que seguem um modelo televisivo de programas de auditório, com pouca roupa, rebolando atrás do palco. Ao mesmo tempo, você testemunha esse movimento de contestação", descreve.
Como na sociedade, estão presentes ali diferentes formas de machismo. Assim, o forró vai fazendo as suas inúmeras versões. Varia de artista para artista, de estilo e época, argumenta o entrevistado. Anos depois da publicação do estudo, Felipe espera que a situação esteja um pouco mais diferente. Ele compartilha que de 2007 para cá, o tema da simetria de gênero ganhou maior dimensão e espaço no debate público.