“A educação por si não faz grandes mudanças, mas nenhuma grande mudança se faz sem educação”. A frase do filósofo colombiano Bernardo Toro poderia estar numa escola ou numa livraria, na biblioteca ou no museu. Mas está em uma padaria do bairro Farias Brito, em Fortaleza, cujo apreço pelos livros tem tornado o empreendimento uma joia da cidade.
Pequena e aconchegante, a Panificadora São Jorge divide uma vitrine de pães e outras delícias com duas estantes de livros, de um lado e de outro. Além das estruturas na parede, as obras também ocupam cadeiras, microondas e outras superfícies, preenchendo tudo. Os clientes, claro, desfrutam – e com gosto.
Na fila para buscar o pãozinho, vez ou outra espiam os títulos à mostra. Alguns chegam a levar; outros apenas gostam de passar o olhar pelas páginas ou lombadas. São muitos os tipos: o homem que vasculha novidades para contar à filha, amante da literatura; o jovem que leva o primo para conhecer o lugar e ver de perto a combinação inusitada; a senhora que, a caminho da academia, passa antes na padaria não para comprar alimento, mas livros.
“Cultura acima de tudo”, brada Simone de Oliveira, proprietária da panificadora junto ao marido, Adilson Carlos Neves. Segundo ela, há quatro anos o ponto funciona na Avenida José Jatahy, 1674, mas herda a vocação literária de outro endereço. Era o do Sebo Cantinho do Livro, outrora na esquina das ruas General Sampaio e Duque de Caxias, no Centro.
O negócio, também mantido pelo casal, funcionou durante quase 20 anos e foi responsável por alavancar a circulação de obras impressas na Capital. No acervo, trabalhos de todos os tipos: da literatura brasileira à estrangeira, passando por religião e autoajuda, indo de não-ficção a livros didáticos. Devido ao aumento do preço do aluguel, precisaram sair do local e organizar os títulos na própria garagem de casa, ao lado da atual padaria.
“Então veio a pandemia, as atividades do sebo diminuíram, e a gente precisou se reorganizar. Fomos trabalhar com pão”. Para os donos, a nova empreitada não impediu em nada a manutenção do antigo espírito da família. Pelo contrário: potencializou a união de universos a priori tão distintos em algo com um charme todo próprio.
Comprar um pão, levar um livro
O atendimento na Panificadora São Jorge começa cedo. Diariamente, das 5h30 às 7h30, uma fila se forma para a aquisição dos pães – comercializados a preço camarada devido à fabricação própria e ao uso de energia solar na casa. Se a produção é limitada, a adesão é forte: desenha o cotidiano do entorno.
Eles retornam ao estabelecimento apenas às 14h30, quando o cantinho abre as portas novamente e vai até às 19h. Basta o alimento físico acabar para a nutrição cultural ganhar fôlego. Simone conta que, após as aulas, muitos estudantes das universidades ao redor vão para lá a fim de ler e conversar sobre literatura.
“Às vezes, as pessoas até falam ‘Por que, ao invés de livros, vocês não colocam arroz e feijão pra vender?’. É meu esposo quem responde: a gente acredita na cultura. Quando as pessoas chegam aqui e ficam na fila, podem se interessar por um livro e levar. Nossa pretensão é esta: trabalhar com pão e com livros. Mas nossa paixão mesmo são os livros”.
Vem de longe. Ainda na infância, Simone ouvia o pedido da mãe para ajudar em casa e vivia adiando os compromissos porque estava lendo. Crescida, mudou para São Paulo em busca de melhores condições de vida – chegando inclusive a trabalhar em um playcenter, onde cuidava de golfinhos e baleias-orca – mas nunca deixou de lado a leitura.
Ao encontrar Adilson na capital paulista, viu que tudo era muito bom: um casal literário. Mudaram-se para o Ceará, contudo, porque o filho mais velho tinha alergia a frio e era o lugar onde os pais dela continuavam morando.
“Daí, fui trabalhar com meu tio, Nasa, sebeiro antigo. Ao lado dele, aprendi o ofício de compra e de venda de livros e, com o tempo, montei meu próprio sebo”. O letreiro com “Sebo Cantinho dos Livros” continua lá, ao lado da placa indicando a padaria. Faz sentido: ambos são uma coisa só.
Seguir mudando vidas
Questionada sobre os próximos passos da padaria, Simone não quer alterar nada. Acha bom trabalhar com a pequena equipe, observar os clientes chegarem e ocuparem o espaço. Mas revela esforço para que a atenção sobre o estabelecimento não esmoreça. Não à toa, o investimento em uma decoração alinhada a datas comemorativas ou eventos do Brasil e do mundo.
Neste momento mesmo, colore a parede principal da loja o símbolo das Olimpíadas de Paris 2024. No mês passado, eram as bandeirinhas de São João. “Acho bem importante isso, faz diferença para a clientela”, diz, assim como a conservação e a qualidade dos exemplares.
Em um giro rápido, encontramos desde uma edição italiana de um livro de Jorge Amado até um título da prestigiosa Coleção Vaga-lume, passando por obras sobre a história do Ceará e de Fortaleza e de autores como Stephen King, J. R. R. Tolkien e Mario Quintana.
São quase 100 deles organizados nas prateleiras frente a mais de cinco mil guardados no acervo da casa. A ideia é comprar, vender ou trocar. Se o assunto for venda, o preço começa em R$5 e pode chegar a R$40.
Para além do mostruário principal, nos bastidores Simone resguarda pérolas, a exemplo de obras autografadas por Patativa do Assaré. E divide ter ajudado na formação de várias pessoas por meio do comércio de obras, além de realizar sonhos como casa, veículo e estabilidade financeira.
“Aqui sempre falamos que todo livro tem seu dono. O livro pode ficar muito tempo na estante, mas um dia chega aquele que dirá: ‘Esse é o livro que estou procurando’. A gente sempre deixará eles à mostra. Todos são importantes”. Será esta a Padaria Espiritual do século XXI?
Serviço
Panificadora São Jorge/Sebo Cantinho dos Livros
Avenida José Jatahy, 1674, Farias Brito. De segunda a sábado, das 5h30 às 7h30 e das 14h30 às 19h; aos domingos, somente pela manhã. Mais informações nas redes sociais da panificadora-sebo