‘O deus das avencas’ e a literatura como eco do senso de ameaça e resiliência no mundo

Novo livro do escritor paulistano Daniel Galera reúne três novelas nas quais ganham força as incertezas de um porvir calcado em um presente feroz

Daniel Galera não consegue vislumbrar soluções rápidas para as crises vivenciadas atualmente no Brasil. “Vai precisar de muita resistência e esclarecimento da sociedade para atenuar e combater os retrocessos causados pelo bolsonarismo, que não desaparecerão mesmo que o presidente seja afastado ou derrotado nas urnas”, observa o escritor paulistano.

A percepção se alastra pelo modo como ele também desenvolve a própria literatura. Não à toa, “O deus das avencas”, novo livro assinado pelo autor, se vale de um profundo mergulho na ferocidade do presente de forma a alavancar reflexões sobre as incertezas do porvir.

Publicado pela Companhia das Letras, o trabalho reúne três novelas com distintos enredos e ambientações, ligadas pelo fio indigesto do hoje. Na primeira, homônima ao título da obra, temos o confinamento voluntário de um casal esperando um bebê às vistas da última eleição presidencial no País. A situação, conforme Galera, acaba ecoando o isolamento involuntário a que fomos forçados, a fim de proteger a vida humana do vírus.

Por sua vez, em “Tóquio”, ganha corpo a temática da perpetuação da vida. O escritor, assim, imagina a cidade de São Paulo daqui a algumas décadas, dominada por uma tecnologia capaz de armazenar a memória das pessoas em dispositivos, com vistas a não deixar escapar a existência. 

A última história é “Bugônia”, na qual não há o vírus causador da desordem do mundo, mas sim bactérias resistentes, igualmente responsáveis por matar muita gente. “São reverberações desse senso de ameaça e resiliência que tomaram conta do mundo”, sintetiza o literato sobre as narrativas. 

“De modo geral, há a sensação de que nossos corpos estão à mercê de forças naturais e humanas que tornam o sujeito moderno – tão narcisista e alienado dos processos nos quais está enredado – novamente frágil e insignificante após tanto suposto progresso. E a tecnologia é uma das vias que prometem fugas e soluções, adequadas ou não. É por esse prisma que as novelas exploram um pouco a pandemia”.
Daniel Galera
Escritor

Configurações do narrar

O formato das três novelas surgiu no meio do caminho. No início, a intenção de Galera era escrever um punhado de histórias mais curtas e fazer um livro de contos. No entanto, as presentes narrativas acabaram deixando as outras para trás e pediram um formato mais longo, embora nenhuma apontasse para um romance.

“Em algum momento, senti que funcionariam bem como um trio de novelas com grandes saltos cronológicos e ligadas por alguns temas e ideias, ainda que no nível do enredo sejam completamente autônomas. Há um pequeno recuo no passado recente e dois saltos consecutivos rumo a futuros especulados”, detalha.

O texto que abre e intitula o livro começou a ser escrito no fim de 2019; logo, antes da pandemia do novo coronavírus. Um pouco depois desse passo inicial, a escrita precisou se adaptar aos desafios e temores trazidos pela Covid-19. Daniel não quis – e na verdade seria impossível, segundo ele – colocar o cotidiano pandêmico como tema das histórias. Ao mesmo tempo, ignorar esse panorama completamente também era inconcebível.

“Cada novela teve sua faísca inicial. ‘O deus das avencas’ está mais diretamente ligada à lembrança dos dias finais da campanha eleitoral de 2018, à sensação de abismo e retrocesso que se impôs a tanta gente que percebeu que Bolsonaro estava prestes a ser eleito. Essa situação do casal esperando o filho justamente nessa véspera me surgiu como uma janela ficcional para elaborar aquele momento dos pontos de vista íntimo e social”, explica.

“‘Tóquio’ nasceu do meu interesse em escrever algo que tratasse das contradições e zonas escuras do delírio transumanista de migrar para corpos cibernéticos. Meu interesse nesse assunto se juntou a outros pedaços de histórias – como a desse casal de namorados que viaja para Tóquio a convite da mãe do rapaz. Por um lado, o texto pesquisa o tema da identidade nesse contexto tecnológico: o que é uma pessoa, o quanto ela depende do corpo. Por outro, tento imaginar alguns desenlaces de crises do presente, como a mudança climática e suas ameaças à produção de alimentos”.

“Bugônia”, por fim, partiu do desejo genérico do autor de escrever algo de contornos pós-apocalípticos. A vontade encontrou um rumo quando leu sobre o ritual do título, no qual certos povos antigos acreditavam poder gerar enxames de abelhas a partir da carcaça de um boi morto. Outra influência importante nesse processo foi o pensamento da filósofa estadunidense Donna Haraway, autora de dois manifestos que muito afetaram a sensibilidade de Galera nos últimos anos: um sobre o ciborgue e outro sobre espécies companheiras.

A princípio tão diferentes e distantes, as peças ficcionais encontram, na prosa magnética do literato, um modo de não apenas nomear os gestos de um mundo feito de caos e fúria, como também apontar tessituras imaginativas. Caminhos que se esfacelam e se recompõem às vistas de um painel calcado cada vez mais em um pavoroso real.

Família como ponto central

A instituição da família, nesse sentido, avança como um ponto central de análise dessas tantas conjunturas. Atravessar as paisagens movido por esse eixo resulta na percepção do autor que os arranjos familiares são uma das maneiras possíveis de procurar um fio condutor das novelas.

Do jovem casal progressista isolado em parte do convívio com os familiares, avançando pro protagonista de “Tóquio” e sua relação de raiva e dependência com a mãe bilionária, até às conexões de parentesco maleáveis da comunidade em “Bugônia”, há uma sugestão de que a família precisa ser encarada como uma teia expandida que questiona a exclusividade das ideias conservadoras de família tradicional – favorecendo, inclusive, pautas feministas de liberdade e autonomia na vida das mulheres. 

Para Daniel, “é uma visão ligada à nossa necessidade de enfrentar os problemas políticos, sociais e ecológicos do presente e do futuro. Ou talvez de pensar que a esperança que podemos ter passa pela adoção de uma diversidade plena, não apenas entre tradições e identidades culturais, mas que ultrapasse até mesmo as noções de espécie”.

Embora tenha surgido a partir de inquietações de um momento específico, “O deus das avencas” se diferencia dos outros livros publicados por Galera – vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura por “Barba ensopada de sangue” (Companhia das Letras, 2012) – sobretudo por buscar caminhos imaginativos mais distantes do realismo contemporâneo que o escritor vinha praticando nos demais projetos. 

Na visão dele, não chega a haver uma ruptura de estilo, mas os pontos de vista do próprio criador na ficção se afastaram um pouco do indivíduo para tratar de questões mais coletivas ou mesmo filosóficas, amalgamando o presente com visões do futuro. Sobre este, o literato é enfático: “Não sou analista político nem oráculo, então não vou fingir que tenho soluções claras para oferecer”, sublinha.

“Estou tão confuso, cansado e indignado quanto qualquer um que não tenha sido enfeitiçado por essa nossa encarnação de necropolítica de extrema direita. Apoiar qualquer um que se oponha sinceramente a ela talvez seja, em termos genéricos, o que está ao nosso alcance. O dever de cada cidadão é fazer o que puder dentro de suas especificidades e capacidades. Voto, passeatas, apoio financeiro a pessoas e instituições levando em frente as boas causas. Podemos olhar, por exemplo, para a importantíssima manifestação dos povos indígenas em Brasília durante o julgamento do marco temporal das demarcações de terra. Talvez consigamos alcançar tempos melhores sem ter que passar por tragédias maiores”.
Daniel Galera
Escritor

Literatura como questionamento

Tendo, no momento, um contrato para escrever um romance – embora ainda não saiba do que tratará, tampouco se seguirá os caminhos abertos por “O deus das avencas” ou tomará rumo diferente – Daniel Galera pondera sobre uma questão específica no livro relacionada a como podemos encarar o expediente da literatura.

Em determinado momento da primeira novela da obra, o autor sublinha o fato de a personagem Manuela compreender, com o tempo, que a literatura se baseia mais em perguntas do que em respostas. Assim, pergunto a ele: será mesmo essa a função dessa arte, ofertar ao mundo mais a possibilidade do questionamento do que da certeza? Para onde as nossas reflexões feitas a partir dos livros podem nos levar? Onde reside a força da literatura e, nesse sentido, por que continuar escrevendo?

“A literatura deveria aproveitar sua prerrogativa de liberdade criativa total pra causar espanto, alargar os limites do que é possível perguntar, e nesse sentido talvez seja mais valiosa na medida em que faz perguntas em vez de dar respostas. Mas nem isso deve ser uma regra. Escrever ficção é sempre uma exploração, um deslocamento do que já julgamos saber e um mergulho no que ainda desconfiamos saber. Continuo porque acho que é dentro desse tipo de discurso que consigo dizer, se tiver sorte e empenho, alguma coisa que não seja redundante, que leve a imaginação e a sensibilidade de outras pessoas a um lugar proveitoso para elas. E também para mim, claro”.

 

O deus das avencas
Daniel Galera

Companhia das Letras
2021, 248 páginas
R$54,90/ R$34,90 (e-book)


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