O amor e as perspectivas de Angela Gutiérrez à frente da Academia Cearense de Letras

Escritora abre as portas da primeira agremiação literária do gênero do Brasil para falar do enlace com a casa que a escolheu como primeira mulher presidente

O passo, elegante e sorrateiro, é ouvido aos poucos, em doses homeopáticas. Angela Gutiérrez atravessa a primeira metade do auditório do Palácio da Luz, sede da Academia Cearense de Letras, e, como que de repente, surpreende a todos em meio sorriso com um sonoro "pontualmente, cheguei". Na sequência, emenda: "Amo pontualidade, mas não sou caxias, não. Tenho horror a militarismo".

Numa parcela de minuto, em gracioso movimento, olha para o relógio e algum detalhe ali a faz suspirar. Diz que "ama a memória que as coisas têm". Memórias. Amor. Da matéria prima e bruta de que são feitos, é que a escritora tira novelos e mais novelos de fatos, detalhes à boca miúda, arrancando, de algum lugar profundo demais, pequenas travessias por casas, linhas, livros.

"Devo dizer que praticamente nasci numa biblioteca. Foi na casa de meu bisavô e, lá, ela era imensa e continuava por estantes e mais estantes", relembra. "Um fator importantíssimo para que aqueles livros significassem para mim foi o fato de meu pai, Luciano Cavalcante Mota - homem cultíssimo, sempre adiante de seu tempo - ter me incentivado. Amava ouvir a mamãe contar histórias e ele percebeu isso, me levando a folhear várias obras. Foi meu guia na biblioteca da vida".

O horizonte sem fim observado da estrada em que, segura, caminha, desembocou em vasto legado e influência. Natural de Fortaleza, Angela é um dos nomes mais importantes da literatura do Ceará e inveterado destaque na cultura local e nacional. É autora, professora, mestre. É incentivadora da arte e das manifestações próprias de seu povo. Em camada recente, é também histórica pioneira.

Nesta quarta-feira (30), em cerimônia realizada a partir das 19h na Academia Cearense de Letras, torna-se a primeira mulher a assumir o posto de presidente da agremiação na qual ocupa, há 21 anos, a cadeira de número 18. Academia do gênero mais antiga do País, a A ACL foi fundada em agosto de 1894 com contribuição do próprio bisavô da escritora, Tomás Pompeu de Sousa Brasil (1852-1929). A sintonia, não sem motivo, ganha relevo na fala emocionada da artista.

"Há dentro de mim uma ideia de continuidade. A casa teve como primeiro presidente o avô queridíssimo de minha mãe. E, desde que nasci, sempre ouço falar dele não como o presidente da Academia, mas como a pessoa, o intelectual que foi. É um sentimento bom, presente aqui dentro, de que estou continuando um processo começado por ele. Tem uma questão de sangue".

Presidente da ACL entre 2013 e 2016, José Augusto Bezerra reitera a alegria ao afirmar que toda a histórica entidade festeja a mais recente conquista de Angela. "A Academia está trazendo para a sua liderança uma pessoa que tem todas as virtudes necessárias ao bom desempenho do cargo. Estamos todos decisivamente empenhados a ajudá-la no que for necessário para o sucesso da honrosa missão que ela está assumindo", frisa.

Projetos

Eleita por unanimidade pelos membros da casa em dezembro do ano passado, Angela sucede Ubiratan Aguiar e terá como vice-presidente da diretoria o poeta e professor Juarez Leitão. Sempre em tom de reverência pelo que realizou seus antecessores, ela sublinha que priorizará, no biênio 2019-2020, as atividades, ações e projetos culturais, elegendo como ponto principal de trabalho o intercâmbio e valorização da literatura e dos autores e autoras cearenses.

Amplos setores da sociedade também receberão maior tratamento na gestão dela, que almeja abrir as portas da ACL para diferentes segmentos. "Não quer dizer que isso não vem sendo tratado aqui na Academia, porém. Na verdade, sempre foi, mas estou colocando como foco, a luz em cima prioritariamente desse tema", pondera. "Queremos ver, com mais frequência por aqui, estudantes, pesquisadores, grupos... Nossa biblioteca foi toda recuperada e tem um acervo maravilhoso para pesquisa".

A inclinação para envolver cada vez mais pessoas naquela que intitula como uma de suas três casas - depois da de Martins Filho, a Universidade Federal do Ceará, em que foi professora do Departamento de Letras; e da casa do Barão de Studart, o Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará, conforme elenca - reflete muito do enlace desenvolvido com a entidade. "Minha relação com essa instituição vai muito além de um mero 'ser acadêmica'. Ela tem amor. É minha casa, é onde me sinto bem", confessa.

"Quando entrei na Academia, o interessante é que relutei. Achava que estava muito 'verde'. Quando alguns acadêmicos disseram, 'Angela, se candidate', eu pensava que não era o momento para isso. Então, o Doutor Artur Eduardo Benevides - poeta maravilhoso, homem extraordinário que foi - me disse assim: 'Você não quer entrar na casa de seu bisavô?'. Foi decisivo para mim. Na mesma hora, eu disse: 'Eu tenho que entrar'".

Representatividade

De fato, entrou, contudo integrando um panorama ainda insípido. Em 124 anos de existência da Academia Cearense de Letras, são apenas 13 as mulheres consideradas imortais, frente a 177 homens. A lacuna gera pertinente questão: "O fato de eu ser mulher vai mudar na gestão da casa? Talvez, não afirmo, mas a mulher, ao longo das épocas, principalmente nos dias de hoje, é múltipla, consegue fazer várias tarefas ao mesmo tempo, e isso talvez me ajude", acredita.

"Há pelo menos dez anos se conversa sobre ter uma mulher como presidente da Academia. Mas o movimento não foi tão intenso, nem nós, mulheres, trabalhamos tão fortemente, de maneira que isso acontecesse. É porque a tendência das coisas e costumes é se tornarem fixos, né? É preciso que haja algo, alguma força para que essa inércia se quebre e apareça algo novo. Não vou dizer que só pelo fato de eu ser mulher, tudo vai ser diferente. Não. O que eu vou dizer é que a mulher tem tanta capacidade quanto o homem de ocupar determinados cargos para os quais não é convidada".

Alba Valdez (1874-1962) - a primeira figura feminina a emplacar uma cadeira na agremiação, em 1922 - bem como Natércia Campos (1938-2004), Rachel de Queiroz (1910-2003), Henriqueta Galeno (1887-1964), entre tantos outros nomes de agora e de outrora - alargam esse panorama. Foram capazes de driblar os preconceitos e imprimir talento e relevância.

"Eu acho ótima a diversidade. Toda diversidade é boa. O que é ruim é a imposição do pensamento único. Esse, sim, é horrível. Porque é ditatorial, é um pensamento só, é uma coisa só. É tudo igual. O que é bom no relacionamento da sociedade humana, é ter homem, mulher, branco, negro, índio, mestiço, é ter transexual, homossexual, é ter todos os gêneros, todas as cores, todos os tipos de pessoas interagindo", enumera.

A acadêmica Beatriz Alcântara, amiga de longa data da escritora, deixa entrever também o singular valor da conquista. Nas palavras da literata, "foi um patamar muito grande alcançado, com muito significado para nós, mulheres, que fazemos literatura com persistência. Faz tempo que batalhamos. E se tem alguém que merece literariamente estar na Academia é a Angela Gutiérrez".

Ao que esta arremata: "Também acredito que é verdade que, quando uma mulher abre uma porta, ela não abre para ela: ela deixa aberta para outras mulheres. Então, quando alguém dá o primeiro passo, outras poderão vir e nós temos excelentes acadêmicas. Somos em número muito menor. É bom abrir espaço para as minhas amigas, para todas as mulheres do Ceará".

 

Legado literário de Angela Gutiérrez:

Obras de sua autoria

"O Mundo de Flora" (Romance, 1990)

"Vargas Llosa e o romance possível da América Latina" (Ensaio, 1996)

"Canção da menina" (Poesia, 1997)

"Avis Rara" (Estórias, 2001)

"Luzes de Paris e o fogo de Canudos" (Romance, 2006)

"Os sinos de Encarnação" (Contos, 2012)

"O silêncio da penteadeira" (Ficção, contos dramáticos, 2016)

Ficção, contos dramáticos

Obras que organizou

"Iracema, lenda do Ceará, 140 anos" (2005), em parceria com Sânzio de Azevedo

"Tributo a Moreira Campos e Natércia Campos" (2007), em parceria com Vera Moraes

"Homenagem aos 60 anos de Clã" (2008), em parceria com Vera Moraes e Ana Remígio

"Bandeira: verso e traço" (2008), em parceria com Estrigas

 

Conheça outras mulheres que presidiram Academias de Letras no Brasil:

- Nélida Piñon, em 1997, presidiu a Academia Brasileira de Letras, tornando-se a primeira mulher a comandar a casa

- Ana Maria Machado, em 2012, presidiu a Academia Brasileira de Letras

- Evelina Hoisel, em 2015, presidiu a Academia de Letras da Bahia, dividindo a presidência com outra mulher, Myriam Fraga

- Rosa Mendonça de Brito, em 2016, presidiu a Academia Amazonense de Letras

- Margarida Cantarelli, em 2016, presidiu a Academia Pernambucana de Letras