Você pode conhecê-lo de várias formas. Para uma das netas, porém, Eusélio Oliveira está ligado aos detalhes. O amor da vida da avó, um homem apaixonado. Aquele que elegeu a Casa Amarela como a menina dos olhos. Capaz de, por vezes, esquecer os filhos na escola porque estava concentrado em trabalhos audiovisuais. Alguém que lutou muito pelo cinema.
A neta é Gabriela Oliveira, nascida dois anos depois do brutal assassinato do cineasta cearense, em 1991. Apesar de não tê-lo conhecido pessoalmente, ela dedicou os últimos sete anos a reconstruí-lo e, portanto, amá-lo. “Sempre me senti muito próxima dele”, diz. Tão próxima quanto ouvinte: foi por meio do relato de terceiros que o diálogo entre eles se intensificou. De repente, viraram uma pessoa só. Mesma paixão e narrativa.
No próximo dia 13 de outubro, essa fusão de olhares ocupará a tela do Cineteatro São Luiz naquela que certamente será uma das mais emocionantes sessões do Cine Ceará - Festival Ibero-americano de Cinema. “Saravá, meu avô”, primeiro longa-metragem sobre a trajetória de Eusélio – um dos idealizadores do que viria a ser a maior iniciativa voltada para o cinema e o audiovisual do Estado – ganhará exibição especial no encerramento desta edição.
Trata-se de um projeto memorialístico, no qual Gabriela – herdeira de uma reconhecida linhagem de realizadores cinematográficos – desenha a personalidade e atuação de Eusélio conforme vai ouvindo amigos, familiares, aprendizes e uma coleção de pessoas ligadas a ele. O documentário conta com mais de 70 entrevistados.
“Foi uma procura mesmo. Uma construção meio vagarosa porque a maioria dos entrevistados já tinha idade avançada. E muitos foram meus professores, alunos dele. Gente que, quando tinha a minha idade, estudaram e conviveram com meu avô”, conta a jovem cineasta, de apenas 29 anos e abraçada com o desejo do mundo: estender o legado de Oliveira para além do que já é conhecido sobre ele. Gabriela está interessada em minúcias.
Desbravar o mestre
Com “Saravá, meu avô”, a iniciativa de materializar um ente querido na tela ganha mais um fruto. Também já aconteceu com “Elena” (2012), de Petra Costa; “Uma passagem para Mário” (2013), de Eric Laurence; e “Haroldo Serra - Um homem chamado teatro” (2020), de Angela Gurgel, entre tantos outros.
Neste trabalho, em específico, ganha cor uma vida devotada às artes, ao movimento e à insubordinação. Cineasta, poeta e frasista, Eusélio Oliveira, em determinado momento do longa, convoca todos a um brinde: “À nova geração que vai construir, com a imagem, a nossa imagem”. Em outro, fala da própria fama de intenso. “Quando eu era criança, me chamavam de Martim Trovão, talvez por alusão a esse temperamento explosivo”.
“Ele sempre foi uma pessoa muito política e posicionada. Foi preso político porque exibia filmes que não poderiam ser exibidos durante a ditadura; fez parte de partido; iniciou o primeiro cineclube de Fortaleza; o Cine Ceará teve início por meio dele e da Mostra de Cinema, que ele fazia na Casa Amarela… Sempre foi muito ativo”, percebe a neta.
Chegar a essa conclusão se deu pela curiosidade. Aos 18 anos, Gabriela ganhou do pai um caderno de colagens outrora pertencente a uma tia-avó. Nele, estão todas as notícias de jornal sobre a morte de Eusélio, ocorrida após uma discussão banal iniciada pelo sargento reformado da Marinha, Luiz Rufino. Ele se incomodou com o carro estacionado em frente à própria banca de revistas e, após discussão, sacou o revólver.
Eusélio morreu após receber dois tiros. Com ele, o filho Xuxu – como é conhecido Eusélio Gadelha Oliveira – também foi baleado. Até hoje, ele carrega as sequelas provocadas pela violência. Ao co-dirigir o documentário com a filha, contudo, avança mais um passo em homenagear alguém cuja partida sempre é lembrada com saudade e pesar – sobretudo porque o crime, 31 anos depois de ocorrido, segue sem punição. Rufino morreu em 2016 e o caso foi encerrado. Mas ele não passou um dia na cadeia.
“O caderno pelo qual tive acesso tem as fotos dele no chão, baleado, registros da perícia. É um material bem pesado. A partir do que vi, comecei a fazer um estudo e levantar nomes de pessoas que deram entrevista para os jornais, falando quem era o Eusélio. Comecei a pedir contato dessas pessoas para o Wolney [Oliveira] – diretor do Cine Ceará, tio de Gabriela – e fui marcando as entrevistas. Também chamei meu pai para o projeto. Nós dois entrevistávamos e cada um operava uma câmera. Foi um processo bem coletivo”.
O que você verá na tela é resultado do Trabalho de Conclusão de Curso da realizadora, formada em Cinema e Audiovisual pela Universidade de Fortaleza. Desde 2015 a ideia nasceu com ela e, agora, pede para chegar a mais gente. “Foi a forma que achei de conhecê-lo”.
Entre vozes
Essa forma surge bela no telão. A neta percorre o documentário ora como narradora, ora como personagem. É, portanto, sobre Eusélio, mas sobre ela também, que costura sentimental e fisicamente o filme. Não à toa, a fusão entre os dois ao longo da projeção: o público é convidado a encará-los como extensão um do outro. Almas em busca.
“Saravá, meu avô” é beneficiado ainda por imagens do curta-metragem “Eu, sélio” (1991), de Glauber Paiva, ex-aluno do mestre – há também um livro publicado a respeito da trajetória dele, embora sem utilização no filme, chamado “Saravá, Eusélio” (Edições UFC, 2016), da jornalista Beatriz Jucá. Uma poderosa colcha de imagens e dados cujos ecos serão sentidos muito tempo depois da exibição.
“O filme não poderia ser lançado em outro festival. É simbólico. Quero estar nessa exibição olhando para a plateia e não para o telão, pra ver a reação da galera. Existe uma curiosidade para saber quem foi ele e quem poderia ter sido se não fosse o assassinato. Qual seria a relação dele vendo tudo isso acontecer no Brasil, por exemplo. A figura de Eusélio faz falta na luta contra essa realidade”.
Mas que não se cale o grito: Saravá! – sinônimo de “salve” ou “bem-vindo”, utilizado quando algum participante chega a um culto afro-brasileiro, dos quais Eusélio era adepto. Saravá!
Serviço
Exibição do documentário “Saravá, meu avô”, de Gabriela Oliveira
Dia 13 de outubro, durante o encerramento do 32° Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema. Mais informações pelas redes sociais do evento (facebook, instagram e pelo site)