Não-monogamia: entenda o conceito, como funciona e experiências de casais que abriram a relação

No Brasil, comportamento pode ser observado desde o período colonial, com mulheres e homens indígenas alternando livremente entre parcerias amorosas

“Aonde for não quero dor, eu tomo conta de você/ Mas te quero livre também/ Como o tempo vai o vento vem”. Na certa, você leu cantando esse trecho da canção “A sua”, de Marisa Monte. E talvez tenha pensado na mensagem que ele carrega. É algo alimentado por casais feito Ricardo e Ana (nomes fictícios). O funcionário público cearense e a assistente administrativa fluminense são noivos e mantêm um relacionamento não-monogâmico.

Eles iniciaram o namoro em janeiro do ano passado. Dois meses depois, passaram a morar juntos. Ana já havia tido um relacionamento anterior não-monogâmico e Ricardo possuía bastante curiosidade por essa dinâmica. “Conversávamos sobre; porém, só em outubro de 2021 – quando percebemos que tínhamos maturidade, enquanto casal – resolvemos abrir a relação. É o meu primeiro relacionamento dessa forma”, ele comenta.

Com os dois, funciona assim: eles não têm relações fixas com outras pessoas. Geralmente apenas saem para encontros (os famosos dates). Não há convívio para além disso. No caso de Ricardo, todas as parceiras com quem costuma sair sabem que ele está em um relacionamento não-monogâmico. “Isso faz parte da minha vida. Em algum momento da relação, do flerte ou da conversa, vou tocar nesse assunto”.

Ricardo encontrou Ana em uma rede social. Hoje, em um aplicativo de relacionamentos, na bio de ambos consta que eles não são monogâmicos. Não há uma estimativa precisa de quantas pessoas eles encontram por semana ou por mês para se relacionar. Há períodos nos quais não saem com ninguém; em outros, a quantidade aumenta.

“Dentro da não-monogamia, acredito que a gente se enquadra mais no relacionamento aberto porque temos alguns acordos. Poucos, mas temos. Foi uma escolha da gente, claro, é algo conversado – era uma coisa que eu tinha curiosidade e ela também tinha interesse, então meio que encaixou”, detalha Ricardo. 

Ao mesmo tempo, optar por essa configuração envolve uma questão mais íntima para eles, relacionada ao sentimento de liberdade de flertar ou sair com quem estiverem afim em determinado momento. Ultrapassando a afetividade, ambos enxergam a premissa como um ponto importante para todos nós enquanto seres humanos. Indivíduos abertos para o amor.

O que é um relacionamento não-monogâmico

Terapeuta sexual e psicoterapeuta de jovens, adultos e casais, Francisco Ilo explica que a não-monogamia consensual é um termo muito abrangente e inclui várias formas de relacionamentos que não os de exclusividade afetiva ou sexual – própria de um relacionamento monogâmico entre duas pessoas. Este último tipo pode levar consigo a prática da traição, os ciúmes e a ideia de propriedade sobre o outro. 

A não-monogamia, por sua vez, não tem dependência inclusive de orientação sexual específica, podendo envolver heterossexuais, bissexuais, homossexuais etc.

“Como tudo o que é humano, a não-monogamia é multifacetada e repleta de particularidades. Muitas pessoas aderem a alguma de suas formas após passarem por traições, ciúmes, controle e abuso emocional em relacionamentos monogâmicos; para outras, tendo em vista a própria educação e cultura específicas, isso é (ou torna-se) tão ‘natural’ quanto a ideia do casamento na igreja”, observa o estudioso.

Não há consenso étnico ou biológico que estabeleça a monogamia ou a não-monogamia como norma para a humanidade. Esta última, feito a outra, é reconhecidamente uma prática cultural humana presente em outros momentos histórico-sociais e envolve, por isso mesmo, imitação de modelos – alguém que deseja e algo a ser desejado. Se uma pessoa busca amar de forma livre, sem se unir a ninguém fixamente e sem expressar ciúmes, um dos modos de não-monogamia pode ser o modelo que ela escolherá.

Nesse sentido, cabe salientar que a fluidez é característica do momento em que vivemos. O “amor livre” na não-monogamia dá abertura para acordos específicos entre as pessoas quanto ao envolvimento afetivo e sexual que elas estabelecem umas com as outras. Francisco Ilo enxerga configurações diversas nesse panorama.

“A não-monogamia, de forma mais estrita, diz respeito a uma negação das ideias e práticas de exclusividade afetiva e sexual, ciúmes e posse. O termo, no entanto, é usado de forma mais aberta e envolve também trisais, quadrisais e outros relacionamentos que, apesar de envolverem mais de duas pessoas, podem ter exclusividade afetiva-sexual entre si”.
Francisco Ilo
Terapeuta sexual e psicoterapeuta de jovens, adultos e casais

Ricardo e Ana, por exemplo, possuem alguns pactos. Um deles é não saírem com pessoas do mesmo ciclo social de ambos. “Se isso acontecer, a gente vai contar um para o outro”, ele reforça. “Acho que a responsabilidade num relacionamento afetivo – sobretudo tão profundo quanto o meu e o da minha noiva, uma vez que moramos juntos e dividimos responsabilidades – é algo bem profundo e sério”.

Logo, o fato de serem um casal não-monogâmico não estabelece nenhuma relação direta com irresponsabilidades afetivas e emocionais. Amar assim também envolve cuidado, atenção e preocupação com o que o outro está querendo e sentindo. O diálogo, portanto, segue como a base para a consolidação de um relacionamento honesto e genuíno.

“Sempre conversar e trazer inseguranças é muito importante. E respeitar os acordos que a gente constrói também é fundamental. Por mais que exista insegurança e ciúme – algo que é inerente a qualquer relação – a gente confia um no outro. Isso também ajuda a sustentar nossa relação”, sublinha Ricardo.

Tipos de não-monogamia

Nos estudos socioculturais, vê-se a não-monogamia atrelada à ruptura com tradições da colonização europeia: do monoteísmo, dos papéis de gênero, do controle dos afetos e da sexualidade. Considerando o senso comum e a vida diária, esse tipo de configuração amorosa é encarado como forma de viver a sexualidade e a afetividade de forma menos angustiada e livre das expectativas herdadas da nossa cultura.

Um componente bastante presente na fala de Ricardo e Ana. Conforme refletem, uma relação não-monogâmica põe em xeque o que é o amor, a monogamia, a dominação e o papel da mulher, de forma específica, na relação. “A mulher, teoricamente, não pode viver a própria sexualidade, tem que estar em função do marido, da casa. A relação não-monogâmica vai de encontro a isso, ajudando a colocar esses aspectos em debate de alguma forma”. 

Quanto aos tipos de não-monogamia, o terapeuta sexual Francisco Ilo enumera algumas nomeações usadas em relações não-monogâmicas:

  • Poliamor: envolve, consensualmente, com igualdade e para todos os envolvidos, mais de uma relação íntima, afetiva ou sexual de forma simultânea. Pode assumir várias configurações:
    • Poliamor aberto (trisal, quadrisal etc., que se relacionam com outras pessoas)
    • Poliamor fechado (trisal, quadrisal etc, que não se relacionam com outras pessoas)
    • Poliamor em grupo (trisal, quadrisal etc, onde todos se relacionam entre si)
    • Entre outras
  • Poligamia: em geral, em alguns países, envolve o casamento, sem necessariamente ter afetividade, entre mais de uma pessoa. Via de regra, um homem se casa com duas ou mais mulheres (poliginia), mas em casos onde uma mulher se casa com dois homens é chamada de poliandria.
  • Relação aberta: pessoas compromissadas (namorados, noivos, casados etc.) que se relacionam com outras pessoas;
  • Swing: casal que faz sexo com outras pessoas na presença da parceria, geralmente envolvendo outro casal;
  • Ménage à trois: sexo entre três pessoas, pode envolver pessoas de sexo, gênero e orientação sexual distintas;
  • Entre outras

Tabus

A essa altura, já ficou bastante claro que a não-monogamia encontra vários pontos de diferença com a monogamia – herdeira de uma visão de união eterna e exclusividade afetiva-sexual. Assim, na visão de Francisco Ilo, um estranhamento inicial por parte da sociedade é comum. Mas é preciso reconhecer as diferenças nas escolhas que as pessoas fazem para viverem suas próprias vidas. 

“Boa parte dos incômodos com relação às práticas não-monogâmicas vêm de mitos sobre uma sem-vergonhice e medo de comprometimento atrelados a essas práticas. Essas relações são consensuais (não é traição) e funcionam para homens e mulheres. Podemos estender os conhecimentos sobre o tema através de espaços como este, onde podemos falar sobre o assunto e contar histórias reais e concretas desses relacionamentos”.

Ricardo e Ana reforçam essa ideia. Para eles, o tabu sobre o tema está relacionado à questão de como o machismo está estruturado entre nós – no qual, teoricamente, o homem tem controle sobre a mulher nas relações monogâmicas. 

“O padrão que a gente vê é o homem trair e a mulher não poder exercer a sexualidade dela. A monogamia, assim, é uma forma de o machismo ser exercido na família. Acredito que por isso, por confrontar esse machismo estrutural e essas relações de poder do homem sobre a mulher, a não-monogamia ainda é um tabu, ainda choca e é vista de forma negativa. Vai contra os valores cristãos, todos esses ideais conservadores que regem a nossa sociedade”.
Ricardo
Funcionário público

São ditames vivenciados também nas próprias famílias e círculos de amizade do casal. Ricardo vem de um lar evangélico, e ainda não se sentiu à vontade para falar com os pais sobre a forma como se relaciona; com Ana, por sua vez, esse processo é mais tranquilo, embora ainda enfrente olhares enviesados de alguns amigos. No fim das contas, o que parece existir é o desconhecimento sobre o assunto e, portanto, o florescer do preconceito.

A prática do amor livre, contudo, vem de longe. Segundo pesquisas de Francisco llo, há relatos de não-monogamia nas mais diversas culturas e épocas. No Brasil, durante o período de colonização, existem registros de mulheres e homens indígenas alternando livremente entre parcerias. O comportamento foi suprimido pela hegemonização cristã e, consequentemente, matrimonial dos relacionamentos. 

As discussões sobre não-monogamia e poliamor encontraram apoiadores e críticos ao longo dos anos, mas se fortaleceram mesmo no século XIX e meados do séculos XX, junto à contracultura, neopaganismo, movimentos de revolução sexual feminina (anticoncepcional, preservativo, divórcio, igualdade salarial), enfraquecimento dos ideais cristãos sobre o matrimônio, avanço tecnológico e à disseminação das ideias sobre o assunto. “O período em que vivemos tornou-se marcadamente fluido e maleável, possibilitando novas formas de se relacionar”, demarca o psicólogo.

Experiências entre famosos

O mundo das celebridades também está repleto de casais não-monogâmicos. Juntos há 23 anos, o ator Will Smith e a atriz Jada Pinkett Smith costumam manter relações sexuais com outras pessoas. Em um depoimento dado por Will, a escolha partiu de Jada.

A cantora Pink e o piloto de moto e caminhão Carey Hart seguem o mesmo caminho. Eles decidiram deixar de ser monogâmicos há cerca de quatro anos para que não houvesse mais brigas. O casal passava por altos e baixos no casamento antes de tomar a decisão.

Em solo nacional, o ator Marco Nanini e o produtor Fernando Libonati não são exclusivos um do outro quando o assunto é sexo. Os dois dividem uma relação há mais de 30 anos. Em recente entrevista ao jornal O Globo, Nanini comentou: “A gente fez uma convenção em Barcelona. Ele queria ir para à boate e eu gosto de ficar em casa. Então eu propus, ‘Nando, vamos fazer o seguinte: faz o que você quiser e eu também posso fazer o que eu quiser”.

Por sua vez, a atriz Fernanda Nobre e o diretor José Roberto Jardim, casados, abriram a relação “para dar uma apimentada”. De acordo com eles, o casamento estava acabando. “No nosso caso, a gente começou a abrir quando tinha certeza de que o nosso encontro era o melhor que existia para a gente”, explicou a artista.

Na experiência como terapeuta de casais, Francisco Ilo mensura que, para qualquer relacionamento funcionar – independentemente se monogâmico ou não – é preciso ter o reconhecimento e a aceitação das semelhanças e diferenças entre as parcerias, somados a um diálogo aberto, sincero e negociador. 

“As semelhanças e diferenças são o que geralmente nos atraem nas pessoas com quem nos relacionamos. Mudado o contexto, porém, algo que era admirável pode se tornar motivo de atrito. A comunicação aberta, sincera e negociadora é necessária para lidar com as próprias vulnerabilidades e as da parceria. Sem isso, o relacionamento pode se tornar acusativo, cheio de disputas e rígido”, conclui.