Museu comunitário Acervo Mucuripe revela outra forma de enxergar Fortaleza

Idealizado por Diêgo Di Paula, morador do Grande Mucuripe, esta iniciativa é referência em pesquisa na cidade e virou fonte de pesquisa para a websérie "Mucuripe - Território de Memórias"

O Grande Mucuripe é formado por sete bairros de Fortaleza. Parte da aura em torno desta região é conhecida nacionalmente em versos e canções. Canta-se o destemor dos pescadores e a relação umbilical do mar que atravessa o cotidiano desta população. Indo além da poesia, este território tem muito a nos ensinar sobre o futuro. 

Há seis anos, o Acervo Mucuripe trabalha na salvaguarda da história que une as pessoas desta enorme e pulsante vizinhança. A iniciativa é cria da ação voluntária do morador Diêgo Di Paula. Ao resgatar, catalogar e preservar livros, fotos, documentos, obras de arte, vídeos, entre outros documentos, o projeto tece a memória comunitária. É referência de pesquisa e educação patrimonial.

Visitamos o trabalho desenvolvido por Diego e conhecemos algumas das histórias que decifram o Grande Mucuripe. Um convite a compreender a origem das desigualdades sociais, luta contra a especulação imobiliária e também sua cultura. Uma novidade é que o Acevo Mucuripe ganhou as telas e resultou na criação da websérie "Mucuripe - Território de Memórias", que será lançada este sábado (29), no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. 

Uma demolição no caminho

É uma casa simples, cuja frente pintada de azul é convidativa. Assim, acontece o primeiro contato com o Acervo Mucuripe. Diêgo Di Paula nos recepciona e já lembra as visitas de assinar o livro de frequência. O caderno detalha quem já passou por ali. Estudantes, pesquisadores, turistas estrangeiros e todo um público ávido deixou ali sua passagem.

Diêgo tem sua origem cravada no lugar. O avô foi pescador e estivador do Porto. A mãe nasceu de parteira na mesma rua e ele veio ao mundo no Hospital e Maternidade Sindicato dos Arrumadores de Fortaleza. Este lugar já não existe mais, restou só o prédio.

Guia de turismo e especialista em Gestão Pública, o idealizador do Acervo foi um dos jovens atendidos pelo Projeto Enxame, Organização Não-Governamental criada em 2001 para adolescentes da área do Grande Mucuripe. A partir dali ampliou o pertencimento quanto a história do bairro. 

Em 2017, decidiu criar a página do Acervo Mucuripe no Facebook. Um ano depois, com o crescente volume de "fake news" circulando na plataforma, explica, decidiu migrar para o Instagram, onde atua até hoje. "Consigo por meio dessa rede que as pessoas cheguem até o acervo", detalha. 

A partir de suas andanças e pesquisas foi costurando e reunindo fragmentos desta memória. Fotografias, livros (sejam de história, literatura e até listas telefônicas), jornais, cartões postais, documentos e arquivos formam este museu comunitário. Tudo reunido e organizado sem qualquer incentivo governamental. 

"Partindo desse projeto, tento expandir o olhar para o direito a cidade. Não é só falar de memória, ou aquela coisa saudosista de 'Ah, no meu tempo...'. Tenho que olhar para essa realidade de hoje, essa juventude. A partir desse conjunto de coisas aqui tentar formar a consciência crítica. Isso demora uma vida, não é tão simples".

Uma forte influência para desenvolver este trabalho, conta Diêgo, surgiu anos atrás. Uma ex-moradora, a Verinha Miranda, fazia de sua residência um museu sobre o Mucuripe. "As obras da Via Expressa passaram por cima da casa onde funcionava o museu", conta. Das ironias da vida, o Acervo Mucuripe aconteceu após um tipo ação que se tornou sinônimo de apagamento da memória em Fortaleza: uma demolição. 

História viva

"Ninguém jamais passaria uma via expressa pelo Centro Cultural Dragão do Mar. Mas, como era de comunidade. Ela teve que sair para o Morro Santa Terezinha, já idosa, outro ciclo, perdeu o contato com todas as pessoas vizinhas. Não foi só a remoção da casa ou do museu, foi a remoção da história dela. Ela morreu em 2016", contextuliza. 

Um ano depois o Acervo Mucuripe passou a ser realidade. Durante a conversa, Diêgo vai apresentando reportagens, jornais feitos por moradores e documentos particulares que recontam a criação da comunidade. A vivência dos moradores é regatada e elas revelam este espaço. 

É possível adentrar a jornada destes vizinhos e o que são capazes em prol da comunidade. Um exemplo é Raimunda Souza, carinhosamente conhecida na região por Mundinha do Mucuripe. Ela, líder comunitária, artista plástica, ambientalista que lutou contra a especulação imobiliária no entorno do Riacho Maceió. 

Este material, percebe o jovem memorialista, vem gradualmente construindo outra maneira de entender sua realidade. "Os jovens conseguem entender o que é o Grande Mucuripe. Liga a questão do pertencimento, da afetividade, começa a perceber o que é especulação imobiliária, o que é descaso". 

No Acevo Mucuripe, constam os jornais comunitários produzidos por ela ainda nos anos 1980. Recortes de jornal guardados por ela ao longo das décadas narram a busca por moradia digna. Mundinha do Mucuripe é uma das referências do Grande Mucuripe que foram entrevistadas na websérie "Mucuripe - Território de Memórias", que chega ao público este mês.

Futuro do Acervo

Antes de chegar às plataformas digitais, a websérie documental será lançada nesse sábado (29), às 14h, na Sala 2 do Cinema do Dragão, do Centro Cultural Dragão do Mar. Após a exibição, acontece bate-papo com Diêgo di Paula (pesquisador) e a diretora Juliana Tavares.

A especial tarde ainda conta com apresentação, às 16h, do Reisado Nossa Senhora da Saúde. Trata-se de um grupo originário do Grande Mucuripe. Criado em 2004, marca atuação dos Mestres Mateus e Kátia Juliana. Encontro imperdível.

A websérie de três episódios começou a ser produzida em dezembro de 2022. Os três capítulos são realizados a partir dos temas "A Arte", "A Pesca" e "A Educação Patrimonial". O projeto também conta com a parceria na equipe de captação e edição de vídeo dos artistas Johnnathan Albano e Kiko Alves.

Segundo Juliana Tavares, esta produção audiovisual compartilha e dá visibilidade ao Acervo Mucuripe e todo o seu desdobramento em torno de toda a região. "O Acervo não se limita a este espaço aqui, que Diêgo gentilmente cede. O Acervo é todo o Mucuripe, toda essa espacialidade, as pessoas que fazem parte desta pesquisa feita até aqui", conta a diretora.

 A proposta é entregar ao espectar um universo além do senso comum que existe em torno do Mucuripe. "Conhecemos muito pela praia, pelo mar. Um olhar romântico e colonial do Mucuripe dos jangadeiros. Existe uma vivência muito maior das pessoas, da resistência e de entendermos a cultura e identidades próprias do Mucuripe", finaliza Juliana Tavares

A websérie é uma das ações que buscam continuar o trabalho do Acervo Mucuripe. A ideia é que outros públicos, instituições, comunidades e profissionais abracem o trabalho desenvolvido. Para visitar o museu é preciso entrar em contato e realizar agendamento.

Até ano passado, a entrada era gratuita, porém, a demanda para manter o espaço mudou o cenário e Diêgo viu-se obrigado a cobrar um valor simbólico. "Até mesmo para manutenção, pois não tenho apoio nem de estado ou município. Tenho que arrumar estratégias de ser autossustentável e fazer o acervo continuar". 

Assim, a modesta e valente casa azul vem trilhando sua jornada como outro farol àquela região. Aqui, ilumina-se o passado para entender e propor um futuro diferente. "Por que essa história começa por Vicente Pinzón? E os nossos povos originários? Tento desconstruir essa história que vem de cima para baixo", arremata Diêgo Di Paula.