Médica e cordelista Paola Tôrres toma posse na Academia Brasileira de Literatura de Cordel

Cerimônia acontece neste sábado (18), de forma virtual; trajetória da artista, que ocupará a cadeira pertencente ao músico Moraes Moreira, é marcada por ampla dedicação à tradicional arte em versos

Até hoje, toda vez que Paola Tôrres brinca com a mãe de ofertar um mote e esperar a glosa (nome dado à poesia feita a partir de um tema), ela se conecta a outras gerações da família cujo enlace com as letras sempre se deu de modo muito direto, profundo. 

A memória não engana. Quando criança, a médica e professora descobriu, em casa, folhetos de cordel da avó materna, Antonieta. Apesar de ter falecido precocemente, aos 46 anos, ela deixou um legado de amor pelos romances de cordel por influência da mãe, Priscila, bisavó de Paola.

“Minha bisavó era uma portuguesa que vivia em Caruaru (PE), local onde esse tipo de literatura sempre foi muito abundante. Esses romances foram a distração da minha avó Antonieta durante os seus intermináveis dias de internação no Sanatório em Recife, para tratamento da tuberculose. Foi por meio desses livretos que aprendi com a minha mãe o que é mote e rima”, recorda a artista.

Unidas a Renata Arruda, parceira de Paola, mãe e filha até transformaram uma das glosas costumeiras em canção, gravada por Ney Matogrosso no CD “Nordeste in Natura” (2019), trabalho autoral de Renata e Paola embasado em ritmos populares nordestinos. Exemplo concreto do quanto, nessa história, a dedicação ao cordel não somente atravessa gerações de mulheres como aporta em novos modos de ecoar a arte em versos.

Neste sábado (18), cada detalhe dessa trajetória de paixão e esmero à cultura ganhará mais uma camada, talvez a mais expressiva delas. Às 16h, por meio de transmissão virtual, Paola Tôrres tomará posse na Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), na qual ocupará a cadeira de número 38, cujo patrono é o poeta Manoel Monteiro e era ocupada pelo músico e cordelista Moraes Moreira, falecido em abril deste ano. 

A posse será transmitida diretamente da sede da Academia (RJ), onde estarão presentes apenas Paola, o presidente da instituição e Madrinha Mena (madrinha de todos os cordelistas da Academia), com todos os cuidados recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e ANVISA. O evento terá toda a ritualística das sessões plenárias de posse, exceto pelo cortejo dos poetas; estes, contudo, estarão presentes de forma virtual e fardados com toda a pompa e circunstância que o momento exige. Haverá também atrações musicais.

“Me sinto honrada e ainda custo a crer em tamanho mérito. Farei o possível para oferecer o melhor de mim durante o tempo que me couber ser a ocupante dessa cadeira”, adianta a cordelista.

Mergulho

Paola sempre teve genuíno interesse pela ABLC, instituição sediada no Rio de Janeiro com 30 anos de atuação, a qual, dentre outras iniciativas, lutou para tornar o cordel Patrimônio Imaterial Cultural Brasileiro, em 2018. “Conheço pessoalmente quase todos os acadêmicos e acho que meu empenho em divulgar o cordel nos meus trabalhos, dentro e fora da Medicina, me fizeram chegar a receber o convite para compor a Academia”, diz.

Presidente da entidade, Gonçalo Ferreira reitera a questão. “Ela se tornou candidata e ficou aguardando uma oportunidade para o ingresso. Paola escreve cordéis sobre Medicina, além de ser uma grande artista popular. Não se trata da primeira mulher na Academia, então se unirá às outras candidatas empossadas, cordelistas consagradas feito ela”.

De fato, a incansável atuação da trovadora há muito tem conquistado diferentes partes do Brasil, encantadas com uma poética vigorosa e engajada. Esse debruçamento sobre a arte de compor em versos iniciou ainda na infância, mas se efetivou em 2010. À época, utilizava os folhetos sob sua autoria nas aulas ministradas na Universidade Federal do Ceará e na Universidade de Fortaleza, nas quais leciona nos cursos de Medicina.

“Em 2016, durante um Pós-Doutorado realizado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), meu orientador me instigou a escrever um livro autoetnográfico. Surgiu, então, ‘Andei por Aí – Narrativas de uma Médica em Busca da Medicina’”, conta.

A obra é produzida, em grande parte, sob a égide do cordel e narra as histórias dos pacientes de Paola, portadores de um câncer hematológico chamado linfoma. Cada uma imbrica-se à trajetória da cordelista, como sertaneja e imigrante.

"O livro acabou indo parar nas mãos do doutor Dráuzio Varella, que, além de me convidar para fazer uma websérie, intitulada ‘Sertão de dentro’, prefaciou a segunda edição da obra. A partir daí, minha produção cresceu bastante e tenho andado o país inteiro levando o seguinte lema: ‘Medicina, Cordel e Cantoria é remédio que veio pra curar’”.

Presença confirmada na posse de Paola na ABLC, imbuído de fazer um pequeno discurso a pedido da homenageada, Dráuzio Varella afirma ter bastante admiração pela colega artista. “Tive oportunidade de andar com ela pela região de Quixadá e verificar, no local, o agradecimento das pessoas pela ação de Paola, de tratar os doentes e devolvê-los curados, na grande parte dos casos. Além disso, sempre teve um grande interesse pelos cordéis, os quais ela compõe muito bem. Essa homenagem a ela é muito significativa e justa”, situa.

Cordelteca 

Outra ação de grande relevância de Paola é a idealização da Cordelteca Maria das Neves Baptista Pimentel, da Universidade de Fortaleza, inaugurada no ano passado. Batizada com o nome da primeira mulher a publicar um cordel, conta com um acervo significativo e tem inspirado parcerias dos diversos Centros de Ensino da Universidade com a Biblioteca por meio de pesquisas, visitas e eventos.

“Esse projeto surgiu de uma conversa com o Mestre Gonçalo Ferreira em uma de minhas idas a Santa Tereza. Expressei minha vontade de digitalizar os clássicos da Literatura de Cordel, as obras raras que existem na ABLC, que precisam ser preservadas, por exemplo, de incêndios, como aquele que houve no Museu Nacional. O próximo passo foi pensar em quem me apoiaria nessa tarefa hercúlea. E então, sabendo do comprometimento da minha amiga Manoela Queiroz Bacelar com os acervos de livros raros que existem na Universidade de Fortaleza, onde leciono no curso de Medicina, pedi apoio, ao que fui prontamente atendida”, conta.

Paola detalha que foi incrível como todos manifestaram, de imediato, o amor pelo cordel e, então, eis que a cordelteca foi inaugurada, com a presença da filha e da neta de Maria das Neves, que, devido ao machismo vigente na época da escrita do cordel de sua autoria, teve que utilizar como pseudônimo o nome do marido, Altino Alagoano. 

“Durante a Bienal Internacional do Livro do Ceará, foram organizadas visitas guiadas desde o Centro de Convenções até a cordelteca, que fica na Sala Raquel de Queiroz, no Campus da Universidade. Ela fornece um acervo todo catalogado conforme as regras internacionais que regem a Biblioteconomia. Esse trabalho magnífico foi realizado com o apoio da diretora da Biblioteca, Leonilha Lessa, e toda a sua excelente equipe. Além, claro, do apoio de toda a direção superior da Universidade e da equipe de Marketing”.

No aniversário de um ano da Cordelteca, em agosto, será oferecido o Diploma “Cordel Brasileiro”, cujo intuito é anualmente homenagear um cordelista que esteja vivo e na ativa pelo conjunto de sua obra e serviços prestados ao cordel brasileiro. “Esse diploma também será entregue virtualmente. Os nomes indicados estão sendo estudados pela curadoria do Diploma e, em breve, o homenageado será divulgado”, destaca a artista.

Ao mencionar o nome da artista que intitula o espaço, a artista reflete ainda sobre um ponto de sempre grande importância. Paola e outras cordelistas estão participando da campanha “Cordel sem Machismo”, surgida a partir da necessidade de rediscutir o papel da mulher em todos os espaços. “Queremos o que é nosso por direito: reconhecimento ao nosso trabalho e força para que nossa voz possa ressoar de acordo com o nosso merecimento”, brada, em alta voz.

Detalhes

A artista – que tão cedo teve contato com os clássicos do cordel, a exemplo de “A Chegada de Lampião no Inferno”, de José Pacheco; “O Romance do Pavão Misterioso”, de José Camelo de Melo Resende; e outros tantos livretos e artistas, como Ariano Suassuna, Leandro Gomes de Barros, Cego Aderaldo e Patativa do Assaré – afirma que o que mais valoriza na arte da tradicional composição em versos é a capacidade que o poeta tem de se apropriar de um tema e transformá-lo em poesia. Uma poesia que tem características musicais e sonoras, cuja métrica é ancestralmente familiar aos ouvidos porque revela uma antiga aptidão que conservamos: a de preservar nossa cultura por meio da oralidade. 

Basta observar o panorama histórico da arte cordelista. Antes de serem impressas em folhetos rústicos – populares porque baratos, podendo ser vendidos e adquiridos em feiras – as histórias foram recontadas por centenas de anos por meio de cantadores e repentistas, narradores das bravatas cotidianas. 

“Então, o cordel traz consigo algo muito arcano e potente, que é a marca da história da nossa cultura impressa em cada sextilha, setilha, martelo, enfim, nessas e em tantas outras formas e estéticas de se fazer um verso. É uma forma precisa de comunicação e encantamento, através de uma linguagem que vai do erudito ao coloquial, que irmana poetas de todas as categorias, que empolga acadêmicos e pesquisadores, enfim, tudo isso faz do cordel, para mim, uma paixão sem tamanho”, destaca Paola.

Projetos

A prosa com ela finaliza sobre os trabalhos sob sua autoria que estão por vir. A cordelista está em vias de publicar um novo, a Cartilha em Cordel sobre Leucemia Mieloide Aguda, estendendo o raio de alcance da poesia a serviço de tornar a Medicina e os mecanismos de adoecimento e cura mais inteligíveis a todos.

Também está em um projeto com o ilustrador Jô Oliveira, um livro em que registra todas as tradições folclóricas do estado de origem dela, Pernambuco, e também da região do Cariri cearense. “Estamos procurando financiadores para essa nossa iniciativa, que já está em andamento”, adianta.

“Penso que o cordel, pouco a pouco, tem conquistado mais espaço, mas creio que está longe de ser respeitado como um gênero literário que merece estar presente em todos os lugares de destaque da literatura brasileira. Ano passado, foi a primeira vez que tivemos um espaço nosso na FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), cedido pelo IPHAN, depois que houve o tombamento do cordel como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira”, avalia.

Ao mesmo tempo, acredita ser urgente a criação de um fundo de incentivo e financiamento para que todos os mestres artesãos do cordel possam conseguir manter suas oficinas caseiras abertas e sobreviver dignamente de sua arte. “Um outro ponto importante é que, a partir dos últimos dez anos, vemos também o cordel sair dos folhetos e ganhar espaços nas prateleiras, sendo editados como livros. Cito aqui o mérito de Lucinda Marques, minha editora e presidente de Editora IMEPH, por isso. A casa vem publicando cordéis dos mais variados autores, levando-os para as salas de aula e bienais nacionais e internacionais.”.

Paola carrega, assim, facetas múltiplas de um ofício eternizado em ações e reverências. “Na Academia, procurarei honrar o legado de cada um dos que já ocuparam a cadeira que irei ocupar: o Monteiro, porque levou o cordel para a sala de aula, desde a escola até a universidade, e o Moraes, por sua música. Essas serão minhas bandeiras em louvor da poesia popular nordestina”.

Serviço
Cerimônia de posse de Paola Tôrres na Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC)
Neste sábado (14), às 16h, por meio do YouTube