Livro ‘A extinção das abelhas’ é relato penetrante sobre os vários colapsos do nosso tempo

Segundo romance da escritora gaúcha Natalia Borges Polesso abraça as perdas e a solidão, mas também as formas de se encontrar nas agonias da realidade

Está nublado na capa de “A extinção das abelhas”, novo livro de Natalia Borges Polesso. Mais que sombrio, é um recorte solitário do mundo. Um vento corre pela grama e há uma faixa em sinal de cancela. Imagina-se o frio cortante nessa paisagem sem nome e identidade. Instiga-se também o porquê de as pessoas nela inscreverem linhas de ausência. Onde elas estão no abandono dessa geografia? 

A cada revirar de páginas da obra – um dos mais recentes lançamentos da Companhia das Letras – essa incógnita vai ditando os rumos da narrativa desde a linha que a principia: “As pessoas vão embora, e isso é uma realidade”. Para a autora, a expressão alicerça que o romance é sobre perdas e o estar sozinho, mas também a respeito de se encontrar e compreender outras formas de coletividade, de estar junto.

O livro fala um pouco sobre família – sejam elas desajustadas, escolhidas, precárias em suas relações. Tudo meio que acontece nos tensionamentos de pequenos grupos que se encontram, se desencontram, se fazem, refazem e desfazem sem ter necessariamente parentesco”, dimensiona. Na sequência, opina que nos últimos anos ficamos mais desconfiados e que algumas relações familiares se tornaram impossíveis com a escalada dos discursos racistas e homofóbicos da ultra-direita.

“Isso pauta não só nosso olhar para o mundo, mas nossa vida mesmo, nossas escolhas de conversas banais a grandes decisões”, situa Natalia. Nesse sentido, “A extinção das abelhas” cumpre muito bem o expediente de amalgamar essas e várias outras reflexões por meio de uma história em que se está a todo momento revirando destroços. Feito nós.

Na trama – dividida em três partes e com um breve capítulo entre elas – acompanhamos Regina, órfã e moradora na primitiva casa dos pais, ausentes há muito tempo. O pai morreu e a mãe sumiu, deixando-a no ziguezaguear inclemente da vida. Desta feita, ela busca novas formas de encontro nos mais diversos atravessamentos: em Eugênia e Denise, casal de mulheres que a adota; em Aline, irmã adotiva; em Paula, sua ex-namorada; na gata, Paranoia. 

Nessa galeria de fisionomias e temperamentos, há ainda Dona Eugênia, uma das personagens mais interessantes do livro, acolhida por Regina devido à situação de vulnerabilidade social em que se encontra. São fragmentos de realidades que delineiam a primeira parte da obra, na qual é possível também acompanhar a atuação da protagonista como camgirl – modelo de webcam que geralmente realiza serviços sexuais em troca de dinheiro, bens ou atenção. Uma saída possível de modo a driblar os entraves financeiros.

Instâncias da degradação

A segunda parte do romance dialoga de modo mais frontal com a atmosfera criada pelo título e pela capa do trabalho – embora, já na seção inicial, tenhamos ideia de que o mundo convive, naquele momento, com a extinção das abelhas, o que, obviamente, interfere diretamente na produção alimentícia global, embora não apenas.

Polesso se vale desse apagamento dos pequenos seres – responsáveis por atuar na manutenção dos ecossistemas e, portanto, da vida – para adentrar nos mais diversos colapsos de nosso tempo e de um universo depois do fim. E faz isso por meio de textos brevíssimos, embora bastante contundentes, responsáveis por resguardar linhas como “Ouve que é ali. No que sobra. Ali está a resposta”. 

Segundo a escritora, o cerne da narrativa foi encontrada quando, no processo de concepção do livro, chegou exatamente à ideia de colapso, em 2017. “Essa é a palavra-chave de ‘A extinção das abelhas’, e não apenas o colapso ecológico, mas o colapso das mentalidades, dos sistemas, das relações e do próprio desejo. A partir daí, dei um rumo à Regina e Guadalupe”, explica, referenciando outra personagem seminal da história.

“Eu queria muito escrever sobre o nosso tempo, sobre o que estamos vivendo, mas ao mesmo tempo não queria um livro realista. Esses foram meus nortes, talvez”, completa. Avançando e voltando no tempo, recuperando memórias e fragmentos de situações, o enredo também traz momentos vivenciados em plena pandemia de Covid-19. Questionada sobre como foi escrever sobre e neste indigesto instante, Natalia diz que entregou o livro à sua editora no início de 2020, sem qualquer sombra do que seria o cenário pandêmico.

“Parece que a pandemia apenas ressaltou os problemas que já estavam aqui. Durante a edição – com atrasos, devido às incertezas do mercado literário no ano de 2020 – fiz algumas inserções sobre a pandemia de Covid-19, pois se eu tinha mesmo falado de tantos eventos marcantes reais dos últimos anos, por que não mencionaria a pandemia? De modo que o que estamos passando não me influenciou durante a escrita do livro, que foi anterior, mas parece que se aviva frente à realidade. O livro se torna pós-pandêmico não pela ficção”.
Natalia Borges Polesso
Escritora

Fluida arquitetura

Além das temáticas, também merece atenção no romance a maneira como a autora conecta um capítulo a outro, interligando-os por meio da palavra final de um e o título do próximo, o que confere uma singular fluidez à leitura. Natalia sublinha que a opção por essa arquitetura dialoga com a estrutura da tessitura narrativa.

Na primeira parte do livro, por exemplo, há dois eixos temporais: o de Guadalupe, no passado; e o de Regina, num futuro próximo. Mas o eixo desta não é exatamente linear. Assim, a escritora quis dar algum conforto ao público, uma vez que, de acordo com ela, “demora um pouco para fazer sentido”. 

“É como se a pessoa tivesse que montar um pequeno quebra-cabeças e seguir pistas. Então, liguei os capítulos de outra maneira, e tentei prender o leitor por essa fluidez construída nas páginas”, contextualiza. Quanto aos outros detalhes do processo de escrita da história, ela diz que o modo como desenvolve suas narrativas muda a cada projeto. 

Em “Recortes para álbum de fotografia sem gente” (Dublinense, 2018), por exemplo, ganhou corpo o tensionamento de imagens; em “Amora” (Dublinense, 2015), a construção das narradoras e personagens; em “Controle” (Companhia das Letras, 2019), a narrativa – a construção de uma narradora em primeira pessoa ligada à música, com um problema de memória e uma doença neurológica. 

Em “A extinção das abelhas”, ganhou proporções a fluidez, a construção de narradores não-humanos. A voz do colapso. “No mais, gosto de me propor alguns exercícios de escrita que me ajudam na composição de cenas e suas transições”, pontua. Um esmero que igualmente se reflete na própria forma de presentificar o texto e nas ponderações nele embutidas.

Como nesta sentença: “Era preciso construir monumentos esquisitíssimos, com nomes ridículos e em algumas línguas impronunciáveis, para que as pessoas acreditassem nas palavras, nas promessas. Nos indicadores reais das coisas do mundo: os preços, as faltas, as mortes”. O trecho, uma crítica direta aos negacionistas e ao espetáculo, evidencia muito da precisão com a qual Polesso observa o entorno.

“É uma crítica aos negacionistas, porque desacreditam a ciência e há muito já vêm minando a educação, destratando professores, encurralando artistas e deixando de lado as políticas públicas em diversas áreas – sim, porque há negacionistas por toda parte. Parece que têm ódio ao pensamento livre e às humanidades, especialmente”, considera.

“E também uma crítica ao espetáculo porque, se tudo já era espetacularizado na televisão, agora são mil olhos criando micro-espetáculos, muitas vezes em busca de cliques e likes. Posso dar como exemplo recente os vídeos de pessoas caindo do avião que saía do aeroporto de Cabul, no Afeganistão. A situação toda já é horrível, há informações políticas e sociais suficientes, há mulheres que são a voz viva da história, como Malala. Mas, ainda assim, é preciso espetacularizar a morte e o sofrimento com essas imagens horrendas. Parece que é preciso cada vez mais o horror para chocar, para que as pessoas entendam que os mundos acabam a todo momento e de uma hora para outra, na nossa frente”.
Natalia Borges Polesso
Escritora

Entre conexões

Ao esmiuçar os aspectos da mais recente empreitada, Natalia considera ser este trabalho mais um passo em sua trajetória literária rumo ao desejo crescente de construir vozes de mulheres e pessoas LGBTQIAP+. Indivíduos que transitam fora da heteronormatividade no mundo. Não à toa, a obra é repleta de construções que ampliam as maneiras de presentificarmos desafios e complexidades – indo da perspectiva da identidade ao uso indiscriminado da internet, até as já citadas considerações sobre a contemporaneidade pandêmica e os formatos de família, por exemplo.

“Espero que as pessoas entendam e consigam entrar na história, entender os meandros. Gostaria que a trama realmente lhes dissesse coisas importantes e que os experimentalismos sejam compreendidos como recursos estéticos para a experiência da narrativa”, torce.

Por outro lado, diz estar empenhada em outros projetos, mas, no momento, cuidando da saúde. “Estou trabalhando lentamente em um livro de contos mais surreais, oníricos, e em um livro de não-ficção, fruto da minha pesquisa de pós-doutorado. Porém é realmente tudo muito incipiente. Mas tem coisas esparsas em revistas; recentemente publiquei um conto de que gosto muito no Suplemento Pernambuco”.

O diálogo com a autora finaliza mediante a opinião de que o livro lhe marca pela complexidade e pelo tempo de escrita. Componentes que, Natalia espera, suscite emoções capazes de tocar o público, feito uma das passagens mais belas da história: “Acho que teremos que fazer o luto dos sonhos e aprender a dormir de novo, aprender a cansar um cansaço que não seja útil para dormir de novo e quem sabe sonhar de novo com coisas inéditas”.

 

A extinção das abelhas
Natalia Borges Polesso

Companhia das Letras
2021, 312 páginas
R$55,92/ R$39,90 (e-book)