Lembra da mortalha no Fortal? Conheça a história da vestimenta que deu origem ao abadá

Do surgimento no Carnaval de Salvador dos anos 1960 até o atual momento de customização, indumentária consolidou imaginário dos fãs ao longo dos 30 anos de festa

Em três décadas de folia, um acessório é protagonista na trajetória do Fortal. Falamos da vestimenta oficial do evento, o uniforme capaz de arrastar multidões em torno do trio elétrico. Começou sendo chamado de "mortalha" nas duas primeiras edições (1992 e 1993) e consolidou-se enquanto "abadá" no coração dos fãs. 

O nome inicial da vestimenta pode causar espanto, contudo, sua criação remete ao Carnaval de Salvador.  "Tais indumentárias têm origem numa fantasia, a de morto, e que, na qualidade de vestimenta, era uma forma de contradizer pelas roupas a grande alegria com que se desfilava", explica o artigo "A diversidade dos carnavais no Brasil: sobre fantasias e abadás", de autoria de Clarissa Valadares Xavier e Carlos Eduardo Santos Maia.

Sócio fundador da micareta cearense, Ailton Júnior detalha como conheceu a mortalha aos 18 anos enquanto ainda era só folião em Salvador e Vitória da Conquista. "O bloco era durante o dia, no sol quente. Vi aquela turma, vestida de cima a baixo com aquela indumentária, um tecido pesado. As pessoas suavam muito. A consistência do tecido aumentava esse calor no corpo", resgata.

Contudo, nada impedia a festa. Com o axé em alta, a cidade soteropolitana reunia "gente de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais. Da Avenida Sete aos trios independentes na Barra, os principais blocos, todos utilizavam a mortalha", descreve. 

"Usava o corpo todo, os braços ficavam livres. Era obrigatório, você comprava a mortalha para participar. Como era Carnaval, as mulheres que gostavam de se produzir não tinham muita condição. "Não tinha como customizar, era regra ter a peça integral dentro do bloco. Podia parecer estranho, mas, ao mesmo tempo, as pessoas não estavam nem aí"

Como surgiu o abadá

A partir daquela experiência foliã em Salvador, Ailton Júnior e amigos formam o Araboneco, bloco formado por cearenses que durante muitos anos participaram do Carnaval de Salvador e sentiram a importância de uma micareta fora de época em Fortaleza. Naquela altura, além da capital baiana, Campina Grande (com o "Micarande") e Natal ("Carnatal") já contavam com um evento nos mesmos moldes.

No entanto, a mortalha desembarca em chão cearense com um toque todo particular. E detalhe, meses antes do Fortal ser realizado. Em fevereiro de 1992, o Araboneco foi uma das atrações do Pré-Carnaval de Fortaleza daquele ano. Ganhou a rua com o Trio elétrico Som da Praça e a participação da banda Pimenta Malagueta.

Ailton Júnior descreve como a mortalha ganhou uma versão local. "Fizemos uma peça grande, com a nossa leitura de cearense, que traz humor e ironia. Todo mundo de turbante", descreve. Tal tempero divertido está na escolha do nome do bloco, afinal, "Araboneco" é referência à frase "árabe botando boneco".

Em bom "cearensês", "botar boneco" também é sinônimo de diversão sem limites. Bem sucedida, a experiência com o Pré animou o grupo a criar um objetivo bem mais audacioso. A ideia ganhou corpo e os integrantes promovem o I Fortal.

Assim, a micareta nasce em julho de 1992, com o bloco Araboneco e os grupos Cheiro de Amor, Pimenta Malagueta e participação do trio elétrico Espacial, de Dodô e Osmar. Em 1994, em sua terceira edição, o Fortal efetiva o abadá como a roupa oficial. A substituição acompanha a tendência criada, um ano antes, em Salvador.

Na Bahia, a mudança aconteceu quando o Asa de Águia passou a comandar o bloco Eva. À frente desta inovação estava o designer Pedrinho da Rocha. O realizador, hoje com uma trajetória de 46 anos na área de eventos e Carnaval de Salvador, aponta via blog particular como esta fundamental peça se desenvolveu.  

"O abadá, fantasia ícone do carnaval trioeletrizado, não foi necessariamente uma invenção, mas uma evolução da antiga “mortalha”. Seu nome foi uma homenagem que quis prestar a capoeira. “Abadá” é uma palavra iorubá para “camisa”. É também o nome dado pelos capoeiristas à roupa com que se joga capoeira. Em 1993, a pedido de Durval Lelys, do Asa de Águia, sugeri a novidade para o Bloco Eva. No ano seguinte, todos os blocos aderiram ao sucesso".

Customizar abadá  

Antes de criar o abadá para o Eva, Pedrinho ofereceu o projeto para dois clientes na época, os blocos Pinel e Beijo, mas nenhum bancou a proposta. Anos depois, o mesmo criador conseguiu emplacar a ideia de ter um abadá por dia, com o bloco Cheiro de Amor. 

"Foi uma transição importante", detalha Ailton Júnior. Nos anos 1990, as micaretas se popularizam e ganham outras cidades brasileiras. A busca por conforto passa a ganhar espaço entre os foliões. 

A fantasia passou a ser determinante à questão estética dos blocos. Entram também outros itens como calção, bandana, boné e o "mamãe sacode".

Dava todo o visual do bloco. Para fotografia e transmissão na TV ficava um aparato bacana. O objetivo foi melhorar essa visibilidade e dar conforto", completa o entrevistado. O Fortal foi das mortalhas e posteriormente consolidou o abadá entre os apaixonados pela festa. Atualmente, a vestimenta vive a era das customizações. A liberdade de interferir no item, adicionando elementos e conferindo looks exclusivos. 

"Estamos em outra era. Isso é bacana, ainda existe o sentimento de apresentar modelos e estilos na hora do evento. A rede social impulsionou esse desfile de cores e ideias de customização. Tem a ver com as gerações, normal com a moda. A moda é cíclica, dinâmica, atuante e ativa. Não se pode parar. Tem que evoluir e acompanhar as tendências de mercado", finaliza Ailton Júnior. 

Clarissa Valadares Xavier e Carlos Eduardo Santos Maia analisam o fenômeno. A escolha do público pela customização envolve busca por singularidade e até mesmo um “toque pessoal”. Pensamos que isto se deva ao desejo de se destacar diante dos outros iguais, rompendo com padronização estabelecida pelo traje comum num espaço igualmente comum, contribuem os estudiosos.

Fortal 30 anos

Na rota dos principais festivais de música do Brasil, a micareta completa 30 anos. Em 2023, acontece entre os dias 20 e 23 de julho e a organização promete uma edição histórica. Nomes como Bell Marques, Ivete Sangalo, Durval Lélys e Claudia Leitte se juntam a novidades como o Fervo da Lud, comandado por Ludmilla. 

Um cardápio musical com axé, forró, sertanejo e música eletrônica. E tem atrações que prometem mexer com a memória de quem viveu 'fortais' passados. A lista de estrelas que se apresentam no intervalo dos blocos neste ano inclui Eh o Tchan, Pimenta Malagueta e Timbalada.