‘Frívolo, pueril e insignificante’: livro revela troca de farpas entre célebres escritores cearenses

Polêmica está em “Rodolfo Teófilo - Romancista”, escrito pelo professor e pesquisador Charles Ribeiro; além da obra, exposição reúne partes importantes da história do literato

“Dramalhão decadente, frívolo, pueril, insignificante e monótono a ponto de cansar o leitor”. O rosário nada agradável de adjetivos foi dirigido ao romance “A Fome”, publicado em 1890 por Rodolfo Teófilo. A alfinetada é um dos embates mais acalorados da história da literatura cearense – surgido em um periódico de Fortaleza, Revista Moderna (1891).

À época, o artigo foi escrito de forma anônima e não poupava o livro de estreia de Rodolfo de impropérios. Outro trecho destacava: “(...) enquanto o Sr. Teófilo, que é nortista, que sempre residiu em sua terra, que assistiu de vista todas aquelas cenas canibalescas e incríveis de miséria e fome, não conseguiu dar senão páginas sem estilo, sem arte, sem verdade às vezes”.

A autoria da crítica só seria revelada em 1885 e envolvia outro grande escritor cearense do século XIX: Adolfo Caminha. O texto foi reunido por ele no Rio de Janeiro junto a outros artigos para compor o livro “Cartas Literárias”. Agora, a polêmica volta ao campo de visão por meio de “Rodolfo Teófilo - Romancista”, obra do professor e pesquisador Charles Ribeiro.

O título foi lançado na última quinta-feira (6) na Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece). Nele, o caso é esmiuçado com riqueza de detalhes. Charles diz que Rodolfo Teófilo – acusado de ser mau escritor e de falsear a verdade – descobriu a identidade do próprio algoz quando já era membro da famosa agremiação cultural Padaria Espiritual.

“Indignado, respondeu ao crítico escrevendo dois artigos no jornal O Pão: ‘A normalista’ e ‘Cartas literárias’, textos para atacar o romance ‘A normalista’, de Adolfo Caminha, e a personalidade literária dele”, explica. 

No artigo d'O Pão nº 26, de 15 de outubro de 1895, Teófilo cita: “De todas as injustiças que o Sr. Caminha fez [à] A Fome, a que mais me doeu foi a falta de verdade nas cenas que descrevo. Tenho a consciência do contrário”.

E continua: “(...) percorri abarracamentos, ouvi com grande atenção e piedade as narrativas dos infelizes famintos e assim julguei ter fotografado no meu livro não todos os episódios dessa angustiosa época, porém os que julguei mais extraordinários do ponto de vista das misérias humanas”.

Embates de um lado e de outro

De acordo com Charles, o texto de Teófilo é desenvolvido de modo polêmico ao acusar Caminha de ser “mau caráter, pulha e imbecil”, além de julgar a falta de orientação e preparo científico do colega. 

“Teófilo afirma que o conhecimento científico é fundamental para um escritor naturalista. E se julgava superior, pois era um cientista e adotou o saber científico como critério de ‘verdade’ e de autoridade”.

O escritor também procurou evidenciar não ser um “romancista de gabinete”, pois foi testemunha ocular da seca de 1877, na qual atuou como sanitarista. 

Conflitos, no geral, fizeram parte do cotidiano de Rodolfo. Para efetuar a pesquisa e desenvolvê-la em livro, Charles Ribeiro interpreta que o escritor desenvolveu uma relação dinâmica e complexa com as condições históricas, políticas e culturais da época. Estas interferiram direta e indiretamente na produção das obras literárias assinadas por ele. 

“O livro situa o autor no cenário urbano de sua atuação sociocultural: a cidade de Fortaleza do final do século XIX e início do século XX. Estudei como Rodolfo Teófilo traduziu, através de obra literária, os paradoxos e as peculiaridades do processo de modernização urbana e material da Capital”.

De acordo com o pesquisador, Teófilo passou a maior parte da vida no Ceará, ausentando-se poucas vezes da terra amada. E pode ser considerado uma fonte histórica e cultural fidedigna e privilegiada, pois além de ter sido participante ativo de grandes eventos históricos do Estado, escreveu sobre todos os acontecimentos dos quais participou. 

“Como intelectual engajado, foi ferrenho opositor da oligarquia Accioly (1896-1912), além de denunciar o descaso do governo em relação às secas, percorrendo as regiões assoladas pela peste e pela fome. Também participou ativamente da campanha abolicionista (1881-1883) e, contrariando opositores, conseguiu erradicar a varíola do Ceará durante o período de 1900 a 1907”.

Importante legado

“Rodolfo Teófilo - Romancista”, não sem motivo, é bem-vindo passeio pelo legado do literato. O interesse de Charles por esse panorama artístico surgiu a partir do ingresso na graduação em Letras, na Universidade Federal do Ceará, em 2004. Ali, começou a se aprofundar nos estudos da história e da literatura cearense. 

Em 2006, ingressou no grupo de pesquisa coordenado pela professora Odalice de Castro Silva e efetuou a leitura de todas as obras de Rodolfo, presentes nos acervos e bibliotecas de Fortaleza – a exemplo de Biblioteca Pública do Ceará, Academia Cearense de Letras e Biblioteca do Instituto do Ceará.

“São 20 anos de pesquisa sobre o personagem. Isso resultou numa dissertação de mestrado e numa tese de doutorado. Ao estudar a história do Ceará da segunda metade do século XIX às três primeiras décadas do XX, encontraremos a figura destacada de Rodolfo Teófilo em diversos movimentos e eventos como militante por ocasião das secas, na luta contra a escravidão, no combate à varíola e atacando as tiranias políticas”.

O curso superior em Farmácia forneceu ao cearense o instrumental teórico necessário para a atuação pública como cientista, sanitarista e literato. A maior parte das grandes lutas dele foi registrada nos próprios escritos, tanto nos jornais, quanto nos livros que publicou.

“O que me interessou na figura de Rodolfo Teófilo é que ele foi um homem de intensa atuação pública. Como intelectual, exerceu dois papéis: o de cientista e o de literato. Seu engajamento social ocorreu no terreno sanitário e político. No campo literário, produziu uma obra engajada, em que tentou representar os dramas e as alegrias do povo cearense”.

Foram 28 obras publicadas, abordando os mais variados temas. Além disso, atuou em diversas agremiações literárias e científicas – a exemplo do Instituto Histórico e Geográfico do Ceará, o Clube Literário, a Padaria Espiritual, o Centro Literário, e a Academia Cearense de Letras (tendo sido depois escolhido como patrono da cadeira nº 33). 

O ano de 1890 não representou apenas um marco para o escritor, mas para a literatura nacional. É o ano de publicação do romance “A fome”, que teve o mérito de inaugurar o regionalismo naturalista no Ceará. Por meio dessa ficção, o autor trabalhou temas que seriam explorados pelos romancistas brasileiros da década de 1930, tais como o cangaço, a seca, a fome, o latifúndio e o coronelismo.

Embora detentor de rico conhecimento científico, para alguns críticos, como Adolfo Caminha e Meton de Alencar, Rodolfo não conseguiu ser um legítimo escritor dessa escola. No âmbito mesmo do senso comum, havia uma imagem de Teófilo como bom homem e escritor, ao que Charles Ribeiro questiona: mas a arte se resume ao ato de escrever bem?

“Os críticos acusavam Rodolfo Teófilo de não ter estilo literário. Mas, afinal, o que é estilo de escrita? O que significava para um escritor possuir ou não um estilo? Fundamentado nesse questionamento, pretendo contribuir para a historiografia e a crítica literária cearense, pois Rodolfo foi um cientista que escreveu uma obra ficcional regionalista. Analisar as singularidades da escrita naturalista dele é um de meus objetivos com meu livro”.

Após o lançamento do livro, Charles pretende organizar cursos e eventos sobre o tema. Além da UFC, o professor tem colaborado também com a Biblioteca Pública do Ceará, por exemplo, com a exposição “Rodolfo Teófilo, um intelectual entre as ciências e as letras”, disponível na plataforma Google Arts and Culture da Bece. “Será um ano com muitas atividades sobre Rodolfo”.


Serviço
“Rodolfo Teófilo - Romancista”, de Charles Ribeiro
Editora Riso, 204 páginas, R$60. Disponível para compra no site da editora Riso ou por meio das redes sociais do autor