“Flicts”, de Ziraldo, chega aos 50 anos revigorado por narrativa atemporal sobre autoaceitação

Clássico do cartunista mineiro ganha edição comemorativa pela Melhoramentos, com comentários de outros grandes nomes da literatura

Ver de verdade é exercício demorado. Percorre travessia talvez tão longa quanto achar-se. Atos em constante processo, fundem-se de maneira orgânica: para encontrar o genuíno eu, é preciso perceber com os olhos o interior. Palmilhar escombros, cruzar origens, perceber vontades. E nesse mundaréu de verbos, deixar-se aberto à dor e solidão que muitas vezes essas andanças provocam. Não é fácil captar-se.

Ziraldo compreendeu bem essa perspectiva e fez mais: abraçou-a por completo em doses máximas de criatividade. Concebeu um dos maiores clássicos da literatura infantojuvenil brasileira quando do desafio proposto pelo editor Fernando de Castro Ferro, da Expressão e Cultura.

À época, década de 1960, o cartunista mineiro pretendia editar uma coletânea das tiras semanais que publicava em dois veículos - o Jornal do Brasil e a revista O Cruzeiro. Para realizar o feito, contudo, teria que escrever um livro infantil em curto espaço de tempo, a fim de otimizar o esquema de produção dos conteúdos.

Nascia "Flicts", que, neste ano, celebra meio século em plena forma, revigorado pelo ânimo de gerações ao entrarem em contato com o livro. Texto-imagem sobre muita coisa, é universo de possibilidades abertas, num inventivo jorro cromático em direção ao profundo de nós mesmos, seja entre os de pouca ou maior idade. Afinal, conhecer a si, ao passo que atemporal, também desconhece ciclos. Ou melhor: imerge em todos eles.

Inventividade

Flicts é apresentada à audiência como uma cor "muito rara e muito triste". Diante das outras, ela não parece possuir algo que a defina. Não tem a força do vermelho, a imensa luz do amarelo, nem a paz que tem o azul, conforme Ziraldo destaca. É "frágil, feia e aflita".

Por isso mesmo, tenta de todas as formas se integrar a um mundo onde a totalidade de cores parece saber muito sobre si - podia ser uma narrativa contada por nós mesmos, não é verdade? Nesse contexto, a jornada, ao passo que doída, vai revelar-lhe lições preciosas sobre o próprio eu.

Além de imergir em temáticas caras aos tempos de sempre, o cartunista destaca-se pela inventividade com a qual passa o recado. Se a obra ocupa espaço privilegiado no cenário artístico-cultural brasileiro, muito se deve ao engenhoso trabalho de percepção e arranjo de formas e tons que Ziraldo combina nas páginas, de maneira a expandir a consciência dos leitores sobre o estado de espírito da cor protagonista.

Não à toa, Flicts caminha em cenários construídos a partir do branco total, da flutuação no azul, no atravessar de uma esfera ou entre recortes de outras cores. É tonalidade afoita pela busca. Celebrar os cinquenta anos desse misto de percepções que a obra evoca ficou por conta da Editora Melhoramentos, unida à forte time.

A designer e sobrinha do autor, Adriana Lins, e o designer e escritor Guto Lins, assumiram o leme da proposta de reeditar o material, fac-similar à primeira edição, primando pela fidelidade ao projeto inicialmente idealizado pelo cartunista, mantendo diagramação e tipografia originais.

Também retorna às 80 páginas - outrora havia ficado com 40 devido às demandas mercadológicas - e, conforme a editora, deve sair assim em todas as próximas edições.

Nessa nova-antiga roupagem, vem ainda com um bônus: comentários de amigos de Ziraldo, relevantes personalidades das letras nacionais, tais como Rachel de Queiroz e Millôr Fernandes.

A crônica escrita por Carlos Drummond de Andrade no dia do lançamento do livro também está disponível na íntegra, logo nas primeiras páginas, resgatando as considerações feitas pelo poeta sobre a obra-prima do amigo.

"Que é Flicts? Não digo, não quero dizer. Cada um que trave contato pessoal com Flicts, e sinta o que eu sinto ao conhecê-la: um deslumbramento, um pasmo radiante, a felicidade de renascer diante do espetáculo das coisas em estado puro", confessa.

Processo

Ziraldo finalizou o livro em apenas dois dias, utilizando pedaços de papéis coloridos no protótipo, o que justifica a natureza minimalista e experimental da obra. Pela fácil apreensão do conteúdo - incapaz de negar sua complexidade, mas complementando-a - o material, reeditado várias vezes, já foi adotado como conteúdo pedagógico por escolas e ganhou os palcos a partir de adaptação para o teatro.

Igualmente, foi traduzido para idiomas como inglês e japonês, e, até hoje, não caiu no índice de vendagens da Melhoramentos. Pelo contrário: ano após ano, os exemplares ocupam as mãos do público, seja em eventos de maior porte ou na simples presença nas prateleiras das livrarias.

Para além de tudo o que mencionamos quanto aos aspectos técnicos e imaginativos da narrativa, o que justifica tamanha adesão por parte de leitores e leitoras? É que Flicts é bem mais que grafismos inteligentes esparramados por páginas em brochura. Com o enredo, Ziraldo entrega uma apoteose à sensibilidade sem desmerecer as questões comportamentais importantes para a compreensão própria e do mundo ao redor.

É sobre combater a discriminação e exaltar a diversidade, bem como considerar que nascemos únicos e, portanto, detentores de nossas jornadas. Perceber essas nuances é abrir espaço para que a liberdade de ser quem é convoque novos precedentes de aceitação e acolhimento ao novo e diferente.

Ao final da leitura desse cativante e verdadeiro recorte da vida, você verá que o universo, colorido ao extremo, tem espaço para todas as cores. Neil Armstrong é prova disso. Ao pisar no satélite maior que tudo vê, declarou: "A Lua é Flicts".

Flicts
Ziraldo
Melhoramentos
2019, 80 páginas
R$44, 48