Filha de Aldemir Martins, Mariana Pabst resgata memórias e inspirações artísticas do pai

Em entrevista ao Verso, Mariana Pabst compartilha lembranças da infância com o pai e a relevância do desenho na vida do artista; exposição que reúne ilustrações de Aldemir Martins segue em cartaz até o fim deste mês

Quando adentrou um dos pavilhões da Pinacoteca do Ceará para visitar a mostra “No lápis da vida não tem borracha” pela primeira vez, a artista e curadora Mariana Pabst Martins não encontrou estranhamentos ou surpresas. Pelo contrário: se sentiu um pouco como se estivesse em casa, no seio familiar. Ali estavam, afinal, dezenas de desenhos com os quais ela conviveu durante toda a vida – alguns, que viu serem produzidos; outros, que retratam diversas fases de sua própria infância.

Em cartaz até o dia 30 de setembro, a exposição reúne 166 obras de uma parte pouco conhecida do pai de Mariana, o artista plástico cearense Aldemir Martins: o desenho. Em cartaz desde a inauguração do equipamento cultural, em dezembro de 2022, a mostra tem feito sucesso justamente por provocar sensações de proximidade e reconhecimento mesmo em quem conhece pouco de Aldemir, destaca Mariana.

“Eu acho que todos esses desenhos são coisas que as pessoas podem se conectar, porque não é abstrato. São figuras. Você vê o galo, você vê o jogador de futebol e você reconhece”, destaca Mariana, que esteve em Fortaleza na semana passada, para revisitar a mostra e participar de um seminário sobre a obra do pai e de Antônio Bandeira – também artista e grande amigo de Aldemir. 

As atividades aconteceram na Pinacoteca, onde os dois artistas seguem em diálogo, após compartilharem estudos, trabalhos e até moradia: ao lado da mostra “No lápis da vida não tem borracha” está “Amar se aprende amando”, exposição em homenagem aos 100 anos de nascimento de Bandeira.

A ideia de levar ao grande público essa parte de Aldemir pouco conhecida surgiu de um desejo pessoal de Mariana: mostrar que o pai fazia muito mais do que mostram suas obras que se popularizaram, a exemplo dos animais coloridos que se tornaram símbolo de sua carreira.

“Todo mundo conhece aquele Aldemir que é um Aldemir mais folclórico, o Aldemir colorido, dos galos, dos gatos – as pessoas gostavam muito dos gatos, então ele fazia gato”, explica Mariana. “Mas essa exposição é extremamente intimista. É aquilo que ele fazia em casa, sem a pressão do mercado, sem a pressão do comércio, do vender, do mostrar para os outros. Ele fazia por prazer”, destaca a artista.

Durante a entrevista, realizada entre diversas “Marianas” desenhadas por Aldemir, a filha do cearense se emocionou ao lembrar do pai, que descreveu como “um grande amigo, extremamente generoso e carinhoso” e um artista apaixonado, que desenhava obsessivamente. 

A conexão de Mariana com o pai, aliás, é parte essencial da mostra. Além das gravuras, que em sua maioria fazem parte de seu acervo pessoal, o passeio é envolto em música clássica – a trilha sonora de muitas memórias de infância da artista.

Especialmente quando pequena, ela observava atentamente Aldemir desenhando em sua mesa, enquanto ouvia música clássica ou jazz. Outro som que guarda com carinho é o da pena riscando o papel: para desenhar, conta, Aldemir utilizava materiais simples, tanto pela falta de acesso, inicialmente, quanto pela recusa em abraçar a tecnologia, anos depois.

“Ele desenhava, desenhava, desenhava. Todos esses risquinhos, todo o bordado. Se você olhar, até os meus retratos que têm uma grande mancha preta tem um detalhe super desenhado na gola, no punho, na meia”, aponta.

Geralmente, os desenhos surgiam de duas formas antagônicas: na urgência e na calmaria. “Ele desenhava compulsivamente e o tempo todo, praticamente. Ele desenhava no restaurante, desenhava em casa, desenhava no ateliê, desenhava na casa dos amigos. Qualquer coisa que acontecesse, ele desenhava”, lembra Mariana. 

Com a obsessão pelo traço, os rascunhos eram aperfeiçoados durante horas. Uma vez, conta a artista, o pai decidiu que desenharia um carneiro. Ficou tão entusiasmado com o projeto que ficou horas sentado, desenhando pelo por pelo, encaracolando cada fio encaracolado com cuidado e dedicação. “Você via que ele tinha prazer nisso, sabe? Era como se ele fizesse uma meditação”, completa a filha, emocionada.

Artista rodou o mundo, mas “nunca deixou de ser cearense”

Algumas das obras que fazem parte de “No lápis da vida não tem borracha” serão doadas ao acervo da Pinacoteca do Ceará. Atualmente, boa parte da produção de Aldemir está na galeria de Mariana Pabst, em São Paulo, mas a herdeira de Martins relata que tem feito um esforço para reaproximar as obras do pai de seu estado natal.

“Eu tenho um desejo muito grande de que pelo menos uma parte dessas obras fique em Fortaleza e que continue sendo muito vista pelas pessoas”, pontua. “As pessoas precisam ver isso, porque isso é cultura cearense”, afirma.

A vontade vai além de um objetivo pessoal. Se trata de uma forma de realizar sonhos antigos do pai, que rodou o mundo, mas “nunca deixou de ser cearense”, destaca. Mariana, que nasceu e cresceu em São Paulo, conta que, ainda pequena, viajou bastante com o pai e a mãe, Cora Pabst, por conta de bolsas e premiações concedidas a Aldemir – mas nunca viu o pai falar com tanto brilho de outros lugares como falava do seu Ceará.

“Em Roma, ele ficava desenhando o que tinha em casa, porque ele estava num lugar estranho, que ele não conhecia, ele estava conhecendo. E ele ficou principalmente encantado porque Roma tem muita água. Ele falou ‘olha, para um cearense, chegar em uma cidade que tem uma fonte em cada esquina é a coisa mais maravilhosa do mundo’.”, lembra a artista.

Outra lembrança de infância é quando o pai fez uma série de imagens retratando frutas que não encontrava na Europa. “Não tinha carambola, não tinha manga, não tinha caju… Você não encontra caju em lugar nenhum e ele é super fã do caju. Ele ia ficar super contente de saber que eu comi uma moqueca de caju aqui, por exemplo”, brinca Mariana.

Resgatando memórias e com a missão de levar o legado do pai à frente – junto com o irmão, Pedro Martins –, Mariana destaca a importância de equipamentos culturais com exposições gratuitas e que valorizam artistas cearenses como Aldemir, especialmente para que novos artistas não passem pelos desafios que ele encontrou na juventude para conseguir produzir e consumir arte.

“Foi uma luta do meu pai, durante a vida inteira dele, que a arte estivesse acessível a todo o público, e que isso ensinasse a ver a beleza, a ver o prazer, a cor, a ver o desenho. Porque isso é uma coisa espiritual também”, pontua. “A sociedade tem que abraçar a arte, que é um jeito de diminuir a desigualdade, de diminuir a violência. E é muito importante valorizar o que é nosso. Essas eram as lutas de Aldemir Martins”, conclui.

Serviço
Exposição "No lápis da vida não tem borracha", de Aldemir Martins

Quando: Até 30 de setembro de 2024
Onde: Pinacoteca do Ceará (Complexo Cultural Estação das Artes - Rua 24 de Maio, s/n - Centro)
Horário de visitação: De quarta-feira a sábado, das 12h às 20h; domingos, das 9h às 17h | Acesso até 30min antes do encerramento
Mais informações: @pinacotecadoceara