Não é fácil chegar até Leci Brandão. Tem nada a ver com antipatia. O oposto, a extrema generosidade, é que faz com que todos se acheguem para uma foto, uma prosa ou um abraço com ela, gerando fila e burburinho. “A universidade da vida foi a minha mãe quem me deu”, diz, sorriso fácil, ao recordar dona Lecy de Assunção Brandão, a quem reverencia.
O amor pela genitora percorre também o jeito de olhar para a própria trajetória enquanto cantora, compositora, atriz e política. Leci é um dos maiores nomes do samba e não cansa de surpreender. Em recente passagem por Fortaleza, a carioca dividiu o sofá com o Verso e conversou sobre tudo o que lhe percorre no trabalho e no trato pessoal.
Algo fundamental é a afirmação da própria identidade: mulher, preta, de origem humilde e com histórico de luta para chegar onde chegou. Fatores que semeiam postura concreta. “Quanto mais gente preta tiver nas coisas todas do Brasil, vou ficar feliz. Claro que houve um avanço – você vê nos comerciais, nas novelas, a indústria está mais voltada para a beleza da mulher negra. Mas ainda quero ver uma preta no Supremo Tribunal Federal. Precisamos ter”.
No Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado nesta segunda-feira (20), essas premissas gritam mais alto. E Leci adiantou boa parte delas nos shows realizados na Caixa Cultural Fortaleza na última semana. Quem viu, viu: a diva acenou para professores, povos originários, negras e negros, pessoas da comunidade LGBTQIAP+, entre outros públicos, dedicando música e provocando reflexão. “Foi coisa rápida, depois vinha a canção”.
Esse ofício tão lúcido impressiona. Filha de Madureira, primeira mulher a participar da ala de compositores da Mangueira, Brandão iniciou a carreira no início da década de 1970 e segue projetando realizações. Percorrer o Brasil levando mais samba é um deles. Não apenas: sorver a cultura de cada lugar para, então, adensar o caldo de saberes que lhe é próprio.
No Ceará, pelo menos, exaltou o cancioneiro nordestino, colocando todo mundo para bater na palma da mão enquanto entoava Luiz Gonzaga e Fagner. Coisa linda de se ver. “Não foi um show criado. É o show que a gente faz a vida toda, o ano inteiro. Mas a gente tem uma proposta de trabalho de eu contar a minha carreira durante a apresentação. E aí coloco canções típicas do lugar onde estou porque acho esse diálogo importantíssimo”.
Mulheres no samba
Apesar de não ter sambado no palco fortalezense, como costumeiramente faz, Leci exaltou a efervescência contemporânea das mulheres no gênero. Não era assim antes. Quando começou, em 1971, a artista passou um ano fazendo sambas de quadra, os famosos “sambas de terreiro”, para ingressar na ala de compositores da Mangueira, apenas por ser mulher.
“Se eles aprovassem meu trabalho, eu entraria oficialmente”. Hoje, não. Ela percebe uma presença maior do corpo feminino no samba, a ponto de assumirem inclusive a linha de frente dos grupos. “Elas não só cantam, mas tocam tudo também – percussão, cavaquinho, violão… A mulherada está fazendo um estrago por aí. Pena que a mídia nem sempre mostra, mas nas rodas de samba, nos lugares que o pessoal gosta de samba de raiz, elas estão sempre lá”.
Todas bebem, certamente, do caráter agregador e festeiro da mestra. Leci nem se prepara para os shows. Não aquece voz, não segue rotina específica. Está sempre pronta para o bom combate. Em Fortaleza, pelo menos, ficou mais de uma hora sem beber água, emendando uma canção a outra. A “tia”, como é chamada por todos que a conhecem, pulsa.
“Acho que o que mais espanta as pessoas é o meu comportamento enquanto cidadã. Sou cidadã brasileira. Então, se chego em uma cidade, eu falo da cidade, me incorporo a ela. Já gravei várias músicas de outros lugares mesmo não sendo natural deles. E com isso vou abraçando tudo. Sou apaixonada pela Música Popular Brasileira, mas não só essa que faz sucesso. Sou apaixonada pela música de raiz de todos os locais”.
Não à toa, a opinião de quem sabe das coisas: o samba precisa da mulher em todos os aspectos. Porque tem sensibilidade para compor letras. Porque tem força para execução instrumental. Porque traz para o ambiente a beleza da presença e o respeito. “Quando você vai ver, a maioria das escolas de samba tiveram participação de mulheres na fundação. A mulher faz diferença”.
Pensar o Brasil
Além de sambista, Leci Brandão é deputada estadual de São Paulo. Em fevereiro de 2010, filiou-se ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e se candidatou ao cargo, eleita com mais de 85 mil votos. Foi reeleita em 2014 com 71 mil votos, em 2018 com mais de 64 mil e em 2022 com 90.496 votos. Com a última reeleição, tornou-se a primeira mulher negra a cumprir quatro mandatos consecutivos na história da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
Política, para ela, é tão essencial quanto cantar o Brasil. Após o período enclausurada pela pandemia de Covid-19, temendo pelos rumos do país diante de um governo que descreve como “irresponsável”, agora observa o panorama cultural com mais esperança, certa de que novas coisas serão feitas.
Prefere sonhar. “Sonho em ter saúde. Como tive problemas relacionados a isso recentemente, fiquei muito depressiva, achei que não ia ter mais chance de fazer nada... Mas eu quero sempre que Deus proteja a minha saúde, a da minha família, a dos meus amigos. Sonho também com mais mulheres no samba, que outras, assim como eu, tenham oportunidade de fazer sucesso. E, repito, sonho ver mais gente preta em todos os lugares”.
Ano que vem serão oito décadas de vida. Pretende gravar um novo trabalho – o último, o disco “Simples Assim”, foi em 2016 – e convidar pessoas para chegar mais perto. Continuar dialogando com públicos de todos os extratos, cada letra dela consegue esse feito. Além disso, quer cantar em todos os lugares do Brasil. Só não conhece a Ilha de Marajó (RJ) e Fernando de Noronha (PE). Quem sabe o que vem pela frente?
“São 48 anos de carreira. Eu tenho um amigo que diz assim, ‘como você sacava das coisas de hoje já naquela época distante?’. E eu respondo, ‘eu não sei, isso é coisa de Deus’. Deus me deu o dom, sou uma compositora intuitiva, sempre fui muito observadora. Então, tudo aquilo que eu observava e que mexia com a minha emoção, Ele já mandava uma música – porque eu não toco, então como vem a melodia? É Deus que manda. É Deus quem sabe o que vem”.