Quem passa em frente, pode não saber. Mas, se arriscar entrar, custará a sair. Localizado na estreitíssima Rua Dr. Walder Studart, no Dionísio Torres, o Museu da Escrita é espécie de santuário. Aberto há quase dez anos, resguarda parte da História do mundo e da nossa. Um recanto de possibilidades, tendo a linguagem por signos gráficos como bandeira.
A fachada do lugar – amarela com detalhes em vermelho – reluz. Lá dentro, mais cores. Um painel em azul, verde e roxo exibe a frase “Bem-vindos ao Museu da Escrita”. Está em vários idiomas. Antecipa o fluxo linguístico. “É uma verdadeira viagem nesse pequeno labirinto”, introduz a pedagoga e educadora da casa, Polyanna Marques.
Ela quem nos conduz pelo equipamento, que se agiganta a cada corredor. A dita “viagem” – e é mesmo – inicia por onde tudo começa: na Pré-História. O recorte do museu não é cronológico. Mas é bonito perceber assim o princípio das coisas.
Antes de adentrar a primeira das 15 salas do equipamento, uma representação em tamanho real do ambiente pré-histórico convida o olhar. As pinturas rupestres são uma das mais antigas manifestações estéticas do ser humano. A sensação, portanto, é de transporte. Uma mulher, três homens e uma criança reconstroem o passado. Gênese nossa e da escrita.
Passinhos adiante, uma ala toda dedicada à imprensa. O salto temporal destaca mesas para encadernação de livros e outros trabalhos tipográficos. Há também máquinas de impressão fabricadas em diversos países; réplica em miniatura da prensa de Gutenberg (1400-1468) e, falando nelas, prensas e mais prensas tipográficas, além de obras sobre o tema. Uma riqueza.
Corta para outro capítulo. A Sala 3 é conhecida como a sala do Egito. Pudera: mais representações em tamanho real mergulham o público na exata dimensão do ofício. Fico fascinado ao ver os primeiros objetos de escrita – o cálamo e a cunha. Esta última palavra remete a outra: cuneiforme. Criada pelo sumérios, é dos primeiríssimos tipos conhecidos de representação gráfica. Entre quadros, papiros reais e tábuas de argila, encontro um relicário.
Conversa íntima
Todo o acervo do museu pertence ao fundador, José Luiz Gomes Morais, 74. Algumas peças chegaram à casa também por meio de doações. Não chego a conhecer pessoalmente seu José no dia da visita. Mas é possível senti-lo em cada recinto. É a coleção de um apaixonado.
O próprio nome do equipamento dialoga com o economista. Leva o nome da mãe dele, Maria Isaurita Gomes Morais. “Ela foi professora de uma escola em Sobral durante 35 anos. O museu surgiu como forma de homenageá-la”, explica Polyanna.
Seis mil objetos dão conta de prestar esse tributo. As crianças – principais frequentadoras do espaço, junto às escolas – adoram. Vou me arrebatando também. É fácil favoritar o lugar.
Corro para a sala das máquinas de escrever. Pupilas dilatam, sorriso enlarguece. Lembro, emocionado, da que ganhei de minha tia – uma Remington 25 novinha. No ambiente, várias outras de diferentes nacionalidades, da Inglaterra à Alemanha, passando pela Itália. Fartura.
Aos mais religiosos ou pesquisadores, aquele bônus: um conjunto de 36 Bíblias editadas, cada uma delas em idiomas distintos. Já pensou conferir o livro mais lido do mundo em ucraniano, guarani ou cantonês? Oportunidade.
As surpresas seguem. Representações de monges copistas enobrecem o passeio, ao passo que a disponibilidade de documentos datilografados nos faz viver o tempo que foi há tão pouco tempo. Eis uma beleza do Museu da Escrita: quanto mais se envereda por ele, mais percebemos que aquela trajetória é nossa também.
Ainda conseguimos escrever?
Já são quase duas horas de percurso. Polyanna confidencia que a maioria dos visitantes fica mesmo até o horário-limite de funcionamento. Compreensível. Salas com enciclopédias, listas telefônicas, réguas e a evolução de instrumentos como grampeadores, apontadores e canetas geram identificação. “Olha só, eu tinha um desses”, suspiro, em vários momentos.
A coleção de lápis – maior do Brasil já registrada, com 3430 itens – é um espetáculo à parte para mim. Vibro feito criança ao recordar de um modelo cinza, com detalhes ora verde, ora laranja. Um dos meus lápis favoritos da infância. Ali toco o eterno ao recordar a ânsia de iniciar um novo ano escolar, conhecer gente, desbravar conteúdos. Era (é) bom.
Na sala com fotografias dos escritores prediletos do fundador do museu – Jorge Amado (1912-2001), Cecília Meireles (1901-1964), José de Alencar (1829-1877) e Fernando Pessoa (1888-1935) são alguns – me permito a experiência de tentar escrever algo na máquina de datilografar, bem próximo às antigas e pesadas escrivaninhas. Arrisco “A arte existe porque a vida não basta”, de Ferreira Gullar (1930-2016). Pouca habilidade. Preciso melhorar.
A travessia finaliza com passagem pela sala de publicações em Braille; outra dedicada apenas a cadernos de caligrafia e coleção de selos e cartas; e a reconstituição de uma sala de aula, rememorando o ofício da professora que inspirou a criação do museu. Uma lojinha com mais de 50 itens relacionados à escrita completa o trajeto. Impossível levar apenas uma peça.
Antes da despedida – o céu fecha nesse momento, deveras choroso pela partida – escrevo algo numa folha, munido de uma caneta de pena. O pensamento vem forte: ainda conseguimos escrever assim, a próprio punho, na superfície das coisas? Que traço tem a nossa caligrafia, que curva faz a nossa emoção?
O Museu da Escrita nos recupera esse fôlego. E ainda chama para mais perto: é preciso conhecê-lo. Arriscar entrar e custar a sair. Percebê-lo. Tem um pedaço da gente lá.
Serviço
Museu da Escrita Profª Maria Isaurita Gomes Morais
Rua Dr. Walder Studart, 56 - Dionísio Torres. Funcionamento: de terça a sábado, das 9h às 17h. Após às 14h, é necessário agendamento via WhatsApp ((85) 98695-3244). Ingresso: R$40 (inteira). Valor especial para grupos escolares (R$15 por criança). Perfil nas redes sociais: @museudaescrita_