Dessa paixão pelo cordel e da crença na transformação por meio da leitura, brotam iniciativas poéticas que merecem ser cultivadas em outros jardins. Uma delas floresce pelo entusiasmo do professor Gilson Franco, numa escola da periferia de Fortaleza. Outra é perfumada pela magia dos escritores Sergio Magalhães e Kátia Castelo Branco numa escola do Município de Umirim.
Mas, muito além dos jardins da cultura cearense, o cordel despontou nacionalmente e agora desfruta da sua maior colheita. No dia 19 de setembro de 2018, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu a literatura de cordel como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro. O gênero literário, inserido na cultura brasileira ao fim do século XIX, tem ligação com as narrativas orais, como contos e histórias: à poesia cantada e declamada; e à adaptação para a poesia dos romances em prosa trazidos pelos colonizadores portugueses.
A notícia fortaleceu a esperança dos educadores que trabalham o cordel como ferramenta de pertencimento, protagonismo, desenvoltura, criatividade, alegria e amor pela cultura popular nordestina. As crianças também agradecem a oportunidade de vivenciar o cordel no sentido mais amplo da palavra falada. Pela primeira vez, alunos de uma escola pública do Município de Umirim, tornaram-se protagonistas em um imponente equipamento cultural de Fortaleza. Com cenário simples, porém "aromatizado" pelo colorido das chitas e das colchas de retalhos, eles encenaram Rapunzel, clássico da literatura infantil adaptado para o cordel pelos escritores Sergio Magalhães e Kátia Castelo Branco, idealizadores também do projeto Jardim Literário.
Após alguns ensaios, crianças na faixa etária entre 10 e 11 anos deixaram a cidade de Umirim, distante 120 quilômetros da Capital cearense, para estrear na III Feira do Cordel Brasileiro, realizada em agosto último na Caixa Cultural Fortaleza. Entre os versos de Rapunzel, os pequenos entoavam cantigas de domínio público ritmadas pela sanfona do mestre Abimael.
As habilidades desses alunos da Escola de Ensino Fundamental Raimundo Alves da Silva foram desvendadas e potencializadas por meio do projeto Jardim Literário que, em tão pouco tempo, mostrou resultados surpreendentes. "Essas crianças nunca tinham vivido uma experiência nesse campo harmonioso, de pegar na mão, de dar um abraço, de recitar. Mostramos a elas que as palavras são doces, as palavras têm cheiro, que as palavras têm algo concreto. Provamos ainda que podemos brincar em campos de felicidade, em labirintos...", ressalta Sérgio, durante nossa visita ao estabelecimento da rede municipal de ensino em Umirim.
A diretora da escola, Gorete Fernandes, já comemora os resultados. "Nossas crianças estão mais felizes. Hoje são 10 estudantes participando dessa atividade extracurricular". Os alunos, de fato, estão entusiasmados com o Jardim Literário. "Eu perdi o medo e a vergonha", disse Samuel Souza Soares, 11 anos. "Quando comecei aqui, passei a me sentir mais leve, solta e com mais movimentos", completou Analee Souza, 10. "Eu já gostava muito de livros e de poesia, mas agora estou gostando ainda mais", acrescentou Carla Eleone, 11.
Segundo a educadora e escritora Kátia Castelo Branco, o Jardim Literário surgiu do anseio de ofertar a literatura às crianças de maneira atrativa e descontraída. "Queremos mostrar que ler é bom, que as letrinhas quando pronunciadas de forma cadenciada abrem portais em nossa imaginação, que nos transportam aos mais diversos lugares, que nos arrancam do chão".
Apesar da distância que separa os dois escritores, Serginho mora em Itapajé, e Kátia, em Viçosa do Ceará, eles continuam conectados pelo desejo de despertar nas crianças o gosto pela leitura e pelo cordel. Tanto é que já "cordelizaram" quatro livros: Rapunzel, Romeu e Julieta, O confronto do Bode e a Onça e A lenda do Castelo de Pedra. Os escritores já estão preparando novos lançamentos, dentre eles, O Pequeno Príncipe.
Na ponta da língua
Na Escola de Tempo Integral Ademar Nunes Batista, no Conjunto Ceará, periferia de Fortaleza, todos os alunos do 6º ano fazem questão de recitar, alguns com os versos na ponta da língua. Contagiados pelo entusiasmo de um professor, esses meninos e meninas igualmente se apaixonaram pela literatura de cordel. Em apenas 8 meses de trabalho, já estão brotando os primeiros frutos: protagonismo, desenvoltura, criatividade, alegria e amor pela cultura popular nordestina.
Quem cuida deste terreno fértil diariamente é o professor de Língua Portuguesa, Gilson Franco, 48 anos, com 15 dedicados ao magistério. Em sala de aula, ele não demonstra cansaço, pelo contrário, revela energia capaz de abastecer a esperança dos alunos, dos colegas, das famílias, da comunidade e até mesmo daqueles que já não acreditam mais na possibilidade de uma educação com qualidade na rede pública.
Por meio dos cordéis usados dentro de sala de aula, nos corredores, e até mesmo durante os intervalos, o mestre vai adentrando diversas áreas e acaba invocando diferentes reflexões entre os alunos. "Tem uns autores que são mais questionadores, mais filosóficos", compara o professor logo após o aluno João Gabriel, com voz pausada e clara, recitar "O mal e o sofrimento", do paraibano Leandro Gomes de Barros.
Ainda neste campo reflexivo, as crianças recitam o cearense Tião Simpatia com "A Lei Maria da Penha em cordel", uma das obras do gênero mais publicadas e conhecidas, inclusive fora do Brasil. Além de exaltar os dois nomes, Tião Simpatia pela criatividade e Maria da Penha pela força e coragem na luta de combate à violência contra a mulher, os estudantes vão absorvendo outros saberes nos campos da cidadania, do direito, do respeito, da história e da cultura.
Para a garotada, o poeta Bráulio Bessa é unanimidade. Todos admitem que se emocionam ao recitar o cordel "Palmada de mãe não dói". Confessam aprender várias lições do cotidiano com o poema "Gentileza, gera gentileza". O saudoso Patativa do Assaré (1909-2002)) também é recorrente e motivo de orgulho para alunos que narram seus versos sem pestanejar: "Terra da jandaia, berço de Iracema. Dona do poema de Zé de Alencá./Eu sou brasilêro, fio do Nordeste. Sou cabra da peste, sou do Ceará".
"A literatura de cordel valoriza a cultura local e pode ser ferramenta para estabelecer as relações de pertencimento. Além disso, favorece as linguagens, a oralidade, a percepção da cultura popular, e pode reduzir muito a introversão do estudante", defende o professor que, em poucos meses de dedicação à escola, conseguiu formar o Grupo Juvenil Cordel Encantado.
O gênero literário está sendo aplicado por meio de uma disciplina eletiva para os alunos do 5º e 6º anos, com idades entre 10 a 12 anos. Como resultado, eles já se apresentam até fora de escola, bem como em instituições de caridade, comunidades e associações. "Nosso alunos gostam de tudo, do ritmo, da sonoridade, da intensidade e da rima. É muito bacana esta possibilidade de levar a poesia e o cordel aonde a escola não chega", diz o professor.
Alunos protagonistas
Para conquistar esses novos leitores, o professor destaca que é preciso estabelecer uma relação de confiança e de proximidade com os alunos. "As pessoas acham que as crianças não leem mais porque a internet acabou com tudo. Mas não! Elas são muito receptivas e abertas a tudo. Na escola, já temos os grupos de leitura, de poesia e o de cordel. Ao se apropriarem dessas linguagens, essas crianças também vão se marcando", acredita Gilson.
Como resposta imediata, o professor ressalta a evolução significativa no comportamento e no protagonismo dos alunos. "Eles têm vontade de participar de tudo, de ajudar os colegas, os professores e de fazer a escola crescer. Individualmente, melhoram a disciplina, as notas, a capacidade reflexiva, a atenção e a concentração para decorar um poema", comemora Gilson.