Há 15 anos o Festival Choro Jazz movimenta a vila de Jericoacoara com apresentações e formação musical gratuitas. A oportunidade de ouvir e de aprender com grandes mestres da cultura se expandiu para outras cidades do Ceará e chegou até o Pará neste ano celebrativo, por meio de patrocínio da Petrobrás.
Soure, na Ilha do Marajó, iniciou a programação no sábado e domingo (13, 14), que seguiu para Belém (20) e passa ainda pelo Crato, na região do Cariri, e por Fortaleza antes encerrar onde tudo começou, em Jeri, no mês de dezembro. No line-up, grandes nomes da música brasileira compartilham o palco com artistas locais em uma grande celebração à arte.
A abertura em Soure destacou a riqueza da cultura marajoara, por meio dos grupos de tradição, e mostrou que popular e erudito se encontram bem em espaços públicos e democráticos. O Verso viajou a convite do festival para conferir de perto o início dessa jornada itinerante de fomento à cultura.
Ancestralidade na música e na dança
Parque aberto, esteiras no chão para quem quisesse sentar na frente do palco e apreciar uma sequência de apresentações de altíssimo nível. A edição do Marajó trouxe shows de Dona Onete, Trio Manari, Arraial do Pavulagem, Orquestra Aerofônica, O Charme do Choro, Adamor do Bandolim, Trio Lobita, Renato Borghetti e o mestre Hermeto Pascoal, além dos grupos de tradição Tambores do Pacoval e Cruzeirinho.
Para entrar em terras paraenses, a iniciativa do Ceará firmou parceria com o Festival Marajoara de Cultura Amazônica, realizado no mesmo período na Ilha. O encontro das duas festividades culminou com cortejo cultural pelas ruas de Soure e de Salvaterra, outra cidade ribeirinha. A abertura das duas noites foram puxadas pela tradição e pela celebração do carimbó como patrimônio nacional.
Chegar ao Marajó, assim como chegar a Jeri, onde o festival nasceu, não é dos percursos mais simples. A travessia é feita na água, vai no tempo e no balanço das forças da natureza. Para levar equipamento pesado de som, de luz, por exemplo, tem que esperar a fila da balsa. E precisa também encaixar todos os artistas nos horários da embarcação, como acontece com as jardineiras da vila cearense.
"É mais trabalhoso, mas é legal você ver a felicidade das pessoas, porque está chegando algo diferente. Fico muito feliz, porque estou levando a cultura deles junto comigo. É sempre um aprendizado e um desafio", vibrou o idealizador do projeto, Antonio Ivan Capucho, que realiza o festival em parceria com a Iracema Cultural, da produtora Aline Moraes.
Em um complemento da beleza apresentada no palco, o público se misturou no ritmo dos tambores. Saias coloridas, típicas da região, tomavam a frente e ocupavam os diversos espaços, girando num ritmo cadenciado, uma incentivando a outra a entrar na dança. Mulheres, crianças, homens de muitas caras numa demonstração da força ancestral da expressão artística.
Bonito de ver o público de Soure, cidade com cerca de 25 mil habitantes, vibrando com os conhecidos em evidência, com as letras na ponta da língua, reverenciando os artistas locais que brilharam no palco, uma escolha acertadíssima da curadoria do festival.
E, para alguém de fora do Pará, foi impossível não ser arrastada pela energia do Arraial do Pavulagem e da Orquestra Aerofônica, que também fez parceria com Dona Onete em um "Banzeiro" inesquecível.
A edição de Soure destacou ainda a força feminina na música, com o pioneirismo do quinteto de mulheres de O Charme do Choro, num repertório autoral misturado com a sofisticada execução de clássicos.
Bonito também foi ver a plateia sentada e conectada com instrumental magnífico de Hermeto Pascoal, do Trio Manari, Adamor do Bandolim e de Renato Borghetti. "Várias pessoas do público me pararam pra agradecer a oportunidade de ver Hermeto ao vivo", comemorou o idealizador, Capucho.
Além dos shows, a cidade viveu três dias de oficinas de música, composição e dança, com os artistas participantes do festival, que devem reverberar entre a comunidade na formação de novos nomes.
Música universal
Aos 88 anos, o alagoano Hermeto Pascoal não tocava no Pará há mais de 19. O "Bruxo", de genialidade musical reconhecida internacionalmente, se apresentou nas duas cidades paraenses e ficou especialmente tocado pela vivência no Marajó.
Da estadia de um fim de semana, compôs duas músicas, uma para Soure e outra para o Choro Jazz, festival que já o homenageou na edição de 2026, em Jericoacoara. "Aqui é um dos céus na terra", exaltou em conversa com a imprensa.
Hermeto lançou neste ano o álbum de inéditas “Pra você, Ilza”, uma homenagem à esposa falecida em 2000, mas para os espetáculos em Soure e Belém optou por apresentar um outro setlist, com as experimentações que são características de sua carreira.
“Eu não trago o disco para o palco, porque não quero tirar a surpresa do público. Eu já soltei os passarinhos. O palco é outra coisa. Eu sou 100% intuito, totalmente autodidata", destacou.
Toca brega, carimbó, lambada e guitarrada
O Festival Choro Jazz homenageou mestres da cultura popular paraense, como Diquinho, mestra Amélia e Dona Onete. Aos 85 anos, a cantora que é de Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó foi recebida aos gritos de "rainha", pelo público conterrâneo que se amontoou para vê-la e para dançar ao som da banda "chamegada", comandada pela artista.
O reencontro de Dona Onete com o povo marajora emocionou a artista e a plateia: "Pega fogo, Soure", ela gritou às gargalhadas. Foi o clichê: ninguém ficou parado. E não tinha idade, nem desânimo. Mesmo sem coreografia do TikTok, parecia que os passos da multidão saiam em sintonia, numa grande e inesquecível festa que marcou a memória da cidade e dos 15 anos de festival.
Dona Onete celebra o recém-lançado quinto álbum da carreira, que iniciou aos 70 anos. Ela leva em suas músicas causos, expressões e vivências típicas de sua região: do pitiú ao banzeiro, celebrando agora a "bagaceira" paraense".
Em conversa com o Diário do Nordeste, ela falou sobre cantar a sua história: "Eu visualizo mais o que é do Pará, eu falo mais do que é a gente mesmo. E acho que precisa ser isso, pois só nós vamos cantar as coisas da nossa terra. Fico muito feliz em saber que hoje o Ver-o-Peso, é mais conhecido, que o Brasil todo canta, e conhece e vem pra ver".
Do pratinho cearense à cuia de tacacá
Além de diversão e arte, um festival impulsiona os mais diversos segmentos produtivos. O impacto não se restringe só à cultura ou ao convívio social, movimenta e impulsiona a economia, atrai turistas e olhares.
No Parque de Exposições de Soure uma grande praça de alimentação foi montada com tendas de comida e bebidas. O que no Ceará viraria a oferta do tradicional pratinho de paçoca, vatapá, creme de galinha, por lá o destaque gastronômico ficou para a autenticidade local, onde sobressaem insumos como jambu, mandioca, guaraná e derivados do leite de búfala.
Em Belém, na Casa das Artes, a feira criativa expôs ainda ao trabalho de diversos artistas e artesãos por meio de parceria com a Beirando, rede colaborativa na Amazônia. Joias, artesanato, cerâmica, vestuário, entre outras coisas.
O que esperar do Choro Jazz no Ceará
A organização do festival antecipou com exclusividade ao Verso duas atrações do evento no Ceará: Moacyr Luz e o Samba do Trabalhador, além de João Bosco. Outros nomes e mais informações continuam sob sigilo, mas divulgaremos aqui no Verso, conforme anúncio.
Veja as próximas datas:
SETEMBRO Crato, no Centro Cultural do Cariri: oficinas de 16 a 19; shows de 20 a 22 de setembro
NOVEMBRO Fortaleza, 29 a 1°/12, no Anfiteatro do Por do Sol; oficinas 29/11, na Casa de Vovó Dedé
DEZEMBRO: Jericoacoara, de 3 a 8, com shows e oficinas na vila
A parceria com a Petrobrás já garante que a edição de 2025 será novamente itinerante, alcançando os dois estados nessa ponte bonita entre Ceará e Pará.
*A jornalista viajou a Soure, na Ilha do Marajó, convite do Festival Choro Jazz