Quando pensar em Ana Dulce Ribeiro, 31, pense em persistência e coragem. Ela é toda bravura. Sobretudo por estar no país que mais mata pessoas LGBTQIAP+ pelo quarto ano consecutivo – conforme o mais recente relatório produzido pelo Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+, divulgado no último mês de maio. “Só em ser trans e ocupar espaços que, para a sociedade, não são comuns, já é um desafio”, introduz a bailarina cearense.
Um desses ambientes “incomuns” é a sala de aula. Ana Dulce é professora de Dança da Rede Cuca, política pública da Prefeitura de Fortaleza executada por meio da Secretaria da Juventude. Outro contexto socialmente atípico é o balé. Natural de Maracanaú, desde os 14 anos a artista participa de projetos sociais nos quais a ênfase envolve a magia do movimento corporal no tablado.
A profissionalização no meio ocorreu aos 18 anos de idade e, desde essa época, tem impulsionado a trajetória de Dulce. “Sempre acreditei que investir na arte salva vidas. Hoje, não me imaginaria sem a arte em minhas veias”. Auto descrita como alguém “persistente aos objetivos” e que nunca deixou sentimentos negativos lhe abalarem, ela conta que o balé não contribuiu para o despertar da própria identidade. O reconhecimento de si nasceu bem antes.
“Já era um amor pela dança desde criança, e acabou continuando esse carinho. Minha identidade despertou quando eu era muito nova, ainda pequena. Só não sabia distinguir o que realmente era”. Agora ela sabe, e muito bem. Ultrapassa impedimentos pela força e qualidade do fazer. Carreira aberta para a aclamação.
Dentre as diversas experiências ao longo dos anos, a jovem participou de um intercâmbio na Escola de Gala Ballet Studio em Ballet Clássico, no Uruguai, sob a direção e orientação da renomada bailarina Marlene Lagos – primeira bailarina no Ballet del Sodre de Montevideo, nas modalidades de contemporâneo e jazz.
Ao mesmo tempo, tem colecionado bons momentos na Rede Cuca. O primeiro equipamento ao qual ela teve contato foi o Cuca Barra. “Amo fazer parte da Rede Cuca, algo que tem total importância para a comunidade. Proporciona cursos gratuitos, profissionalizantes, educação e cultura. Conseguimos participar de várias apresentações, competições nacionais e internacionais, premiações e cursos com os melhores profissionais do Brasil”, celebra.
Entrega total de si
No posto de artista, a maior preocupação é realizar uma boa apresentação, capaz de fazer a plateia se arrepiar e se sentir feliz com o trabalho. Por sua vez, em aula, Ana Dulce sempre orienta os alunos a dar tudo de si, a se sentirem bem em cena e a se expressarem de corpo e alma no palco – premissas totalmente alimentadas por ela.
Essa disciplina foi nutrida de modo intuitivo ainda quando assistia a programas de auditório, na infância. Foram eles os primeiros a despertar na bailarina a vontade de imensidão. Não à toa, ganhou uma bolsa de estudos na Escola Ballet Goretti Quintela, em Fortaleza, onde passou três anos. Na sequência, ingressou na Escola Janne Ruth. Lá, se formou em ballet clássico e jazz. Faz parte da companhia até hoje.
“Gostaria de agradecer à minha diretora, Janne Ruth, e à dança, por todas as oportunidades. Prometo lutar para que nós, pessoas trans, possamos sempre ir além com a força da arte”. A fala se alinha a um triste panorama: são poucas as pessoas trans com reconhecimento nesse meio no Ceará, conforme Ana. Falta inclusão e representatividade.
“Ainda somos poucas. Mas acredito que, agora, como embaixadora oficial do Fendafor (Festival Internacional de Dança de Fortaleza), haja um grande incentivo para eles e elas se engajarem na dança”.
Dignidade trans
Foi, inclusive, esta a mais recente conquista de Ana: ser a primeira bailarina trans condecorada embaixadora do Fendafor. Ela se apresentou na abertura do Festival na última quinta-feira (23), no Theatro José de Alencar. Instantes de emoção.
Antes disso, ela já havia se tornado a primeira bailarina trans do Nordeste contemplada com o título “Melhor Bailarina 2022” pelo Festival Internacional do Conselho Brasileiro da Dança (CBDD). “É uma gratidão imensa fazer parte de tudo isso”, festeja.
“O Fendafor, para mim, é um festival inclusivo, que trabalha a representatividade, proporciona enriquecimento cultural, bolsas nacionais e internacionais, cursos e mostras. Ele parece que veio diretamente de um conto de fadas”.
Ser embaixadora da iniciativa, assim, é uma forma de resistência, força e esperança para pessoas LGBTQIAP+. É possível ter os sonhos realizados. É potente mostrar os corpos tendo direito. É preciso ocupar os espaços que quiserem. Desejar e alcançar.
“Meu maior sonho é um dia trazer o método cubano de ballet para o Ceará, ter minha própria escola – uma companhia para pessoas trans – viajar bastante, fazer vários cursos para enriquecer meus conhecimentos e, por fim, tornar os dias das pessoas trans mais dignos”. Que assim seja.