Curta-metragem Fenda representa o Ceará na competição do 52º Festival de Cinema de Gramado

Em entrevista ao Verso, diretora Lis Paim fala sobre o processo de realização da obra e a participação no evento

O filme cearense “Fenda”, dirigido por Lis Paim, foi um dos 12 selecionados para a Mostra Competitiva de Curtas-metragens Brasileiros do 52º Festival de Cinema de Gramado, que acontece entre os dias 9 e 17 de agosto na serra gaúcha. “Fenda” é a segunda produção do Ceará a integrar a programação do evento, após o anúncio da exibição fora de competição do longa-metragem “Motel Destino”, de Karim Aïnouz, na noite de abertura festival.

Estrelado pelas atrizes baianas Edvana Carvalho e Noélia Montanhas e pela cearense Monique Cardoso, “Fenda” acompanha Marta, uma cientista botânica que vive apartada de suas raízes até que aceita receber a visita de Diná, uma velha senhora doce e enxerida que tenta desesperadamente penetrar na sua intimidade.

Segundo Paim, o curta surgiu do desejo de contar uma história protagonizada por mulheres negras, entre a maturidade e a velhice, cujos laços as conectam e as separam ao mesmo tempo. “Poeticamente, o título propõe a ideia de uma fissura estreita e longa de separação, mas também de uma pequena abertura, um acidente improvável, uma rachadura no espaço-tempo pela qual pode irromper a faísca de reconexão do elo ancestral que já se acreditava completamente perdido”, explica.

A obra se destacou de um total de 679 produções inscritas para participar do Festival, que teve curadoria de Daniela Siqueira, Daniela Strack, Fernanda Rocha e Daniel Rodrigues. Além da exibição presencial no Palácio do Festivais, “Fenda” será transmitido pelo Canal Brasil entre os dias 12 e 15 agosto, sempre a partir das 19h, com três filmes por sessão.

Minha vontade é a de falar sobre como toda uma estrutura social de exclusão, desigualdade e racismo produz, dentro das pequenas histórias de pessoas comuns, caminhos de sobrevivência e rachaduras emocionais silenciosas e muito profundas, capazes de atravessar o tempo. É uma história das escolhas possíveis e de condições e caminhos muitas vezes não conciliáveis para estas mulheres ao longo da vida, em um mundo que as oprime e muitas vezes as distanciam
Lis Paim
Diretora

A realização do curta é da Tela Tudo, produtora de Paim, e da Onça Preta Filmes, de Davi Jaguaribe, em parceria com a Orla Filmes e a Veneta Filmes, todas produtoras cearenses de audiovisual. Apoiaram o projeto a Universidade de Fortaleza (Unifor) e a Iluminura Filmes, do cineasta Petrus Cariry, que atua como diretor de fotografia.

Para elaborar a trama, Paim se inspirou em experiências familiares, sobretudo após o falecimento de sua avó, aos 100 anos. “A partida dela me fez olhar pela perspectiva de uma mulher que teve a sua trajetória regida pela necessidade de sobrevivência financeira e, em nome disso, teve que tomar decisões que racharam a sua teia ancestral ao longo de gerações. Este é o cerne da personagem de Diná, feita pela atriz Noélia Montanhas no curta. Uma personagem que já está na margem final da vida, olha para trás e tem um último gesto de coragem em relação ao seu próprio passado”, lembra.

Filmagens no Ceará 

Contemplado pelo Edital de Cinema e Vídeo da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult CE), “Fenda” foi gravado entre julho e agosto de 2023, com uma equipe técnica em sua maioria cearense que reuniu tanto profissionais experientes no setor audiovisual local quanto novos talentos.

Lis Paim, que também atua como docente do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor, diz que tentou priorizar a formação de uma equipe composta em sua maioria por mulheres e pessoas LGBTQIAPN+, por considerar que esse é um ponto importante para o projeto, além de buscar, como professora de Cinema, uma mistura horizontal no set filmagem.

“Fiz uma convocatória pública de estágio na internet e selecionei duas estudantes negras para participar do filme, Magi do Carmo, como logger, e Andreza Ohana, como microfonista. Ao todo participaram cerca de oito estudantes, entre regulares e egressos do curso, em diversas funções, assim como Samuel Brasileiro, que foi meu assistente de direção e hoje também é professor do curso de Cinema da Unifor”, explica.

Paim conta que “Fenda” está em diálogo com alguns de seus trabalhos mais recentes como montadora, entre eles “A Barca” (2020), dirigido por Nilton Resende, e “Chão de Fábrica” (2021), de Nina Kopko, dois curtas-metragens premiados que fizeram uma extensa carreira em festivais e narram pequenas histórias esquecidas sobre mulheres muitas vezes invisíveis, mas que movem as estruturas sociais.

“‘Fenda’ é um filme político também, na minha opinião, protagonizado por duas atrizes pretas, em que uma delas é uma mulher cientista, algo ainda muito incomum na nossa realidade. O Brasil é um país partido, profundamente desigual, formado a partir de histórias de violências e de separação por meio da diáspora africana, das migrações, especialmente nordestinas, por exemplo. E é dessa fissura que surgem histórias como a de ‘Fenda’, das fissuras sociais que se refletem também no ambiente mais doméstico, nos elos partidos dentro de nossas casas, na vida íntima das mulheres”, diz.

A realizadora comemora o momento vivido pelo cinema feito no Ceará, que tem se destacado em festivais nacionais e internacionais e com lançamentos importantes em circuito comercial. “Fico muito animada também em ver a presença de mulheres cearenses diretoras ganhando visibilidade, porque acho que esta é uma lacuna histórica na cena daqui. (...) Todos esses movimentos de mulheres na direção são muito valiosos para o cinema cearense. Acho que os filmes só não vão mais longe e não produzimos mais porque os recursos, especialmente para longas, ainda são muito limitados e poucos projetos são aprovados nos editais, quando há muita gente talentosa e com boas histórias”, afirma Paim.

Competição de curtas

Outros três curtas-metragens realizados no Nordeste dividem espaço com “Fenda” no Festival de Gramado e serão avaliados por um júri formado por profissionais de cinema. São eles: “A Menina e o Pote” (PE), de Valentina Homem, que estreou na 63ª Semana da Crítica do Festival de Cannes; “Movimentos Migratórios” (BA), de Rogério Cathalá, e “Navio” (RN), de Alice Carvalho, Larinha R. Dantas e Vitória Real.

Completam a Mostra Competitiva de Curtas-metragens Brasileiros as obras “A Casa Amarela” (PR), de Adriel Nizer; “Ana Cecília” (RS), de Julia Regis; “Castanho” (AM), de Adanilo; “Maputo” (SP), de Lucas Abrahão; “Pastrana” (RS), de Melissa Brogni e Gabriel Motta; “Ponto e Vírgula” (RJ), de Thiago Kistenmacker; “Ressaca” (MG), de Pedro Estrada, e “Via Sacra” (DF), de João Campos. A programação do evento ainda terá competição de longas-metragens, mostra de documentários, panorama de produções gaúchas, exibições especiais, homenagens e outras atividades.

“Estrear o filme em Gramado este ano tem uma força simbólica muito grande, pois esta é uma edição atípica do Festival, de resistência, depois de uma tragédia enorme que se abateu sobre o Sul e que ainda não ficou no passado dessas pessoas. Pensei que o Festival não fosse ocorrer este ano, mas Gramado tem uma tradição de conseguir sobreviver às intempéries (pandemia, fim da Embrafilme etc.) e é o festival brasileiro com mais edições ininterruptas, ainda que o Festival de Brasília seja o mais antigo. É uma honra, portanto, ter tido o meu primeiro filme como diretora considerado pela curadoria”, conclui a diretora.


*Colaboração especial para o Verso