Cozinheiras do mar: as mulheres que abrem as próprias casas para servir as maravilhas do litoral

Na praia de Moitas, município de Amontada (CE), famílias garantem o sustento ao transformar cozinhas em restaurantes com foco naquilo que o oceano dá


O primeiro cartão de visitas é o sorriso. Depois, o talento. Juntos, esses dois atributos tornam deliciosa a experiência de estar em Moitas, município de Amontada, litoral oeste do Ceará. Mulheres da região transformam as cozinhas das próprias casas em restaurantes com foco naquilo que o oceano dá. São saberes e sabores passados de geração em geração e com cada vez maior alcance, dentro e fora do Estado. De comer rezando.

Esta é a quarta reportagem da série Ceará, Rotas de Amar, que percorre diferentes lugares da terrinha destacando a importância do turismo baseado nas riquezas do oceano. O especial multimídia integra o projeto “Praia é Vida”, promovido pelo Sistema Verdes Mares, com ênfase na valorização e sustentabilidade desse meio indispensável para todos nós.

Entre lojinhas, depósitos e moradias na estrada que sai de Icaraizinho de Amontada a Moitas, uma placa anuncia “A vida fica melhor na praia”. Não dá para discordar. Nesse éden à beira-mar, passeios de barco para conhecer o Túnel do Amor, buggies percorrendo faixas de areia e redes balançando ao léu chamam para conhecer maravilhas quase escondidas, mas muito preciosas. Feito o restaurante Comida no Alpendre, na rua principal do distrito.

O negócio é tocado por Rejane de Lima Pinto, 50 – ou simplesmente Jane – junto à família, composta pelo esposo e pelo cunhado. Os três dividem o lar desde 2020, quando Jane e o marido se mudaram de Fortaleza devido à pandemia de Covid-19. “A gente trabalhava com transporte escolar e turismo, setores que ficaram extintos durante o vírus. Então surgiu a chance de retornar pra cá, onde meu cunhado mora e de onde nós dois somos”.

Em setembro daquele ano, eles enxergaram no talento gastronômico de Jane a possibilidade perfeita de garantir o sustento em meio ao caos. Assim nascia o restaurante na própria casa, cujo cardápio é para lá de diversificado. No almoço preparado para nossa equipe, havia robalo ao molho de camarão; polvo no molho de coco; galinha caipira, acompanhada de pirão; macaxeira frita e carne de sol. Para acompanhar, suco de frutas nativas. Formidável.

O modo de servir, com toda a simpatia de Jane, é complementado pela beleza do lugar onde são degustadas as iguarias. Uma vez o alpendre ter ficado pequeno para atender a farta clientela, a cozinheira precisou estender as mesas e cadeiras para o espaço complementar da residência, com aura de sítio. Assim, as refeições são saboreadas debaixo de árvores e sob o vento do oceano. Um riachinho ao lado e redes estendidas para a sesta completam o cenário.

“Nós trabalhamos com dois públicos: de nativos e de turistas. Para os nativos, temos um cardápio do dia a dia que vai mudando a partir de pratos que o pessoal gosta – como frango ao molho, porco cozido e frito, mistão, galinha caipira e fígado acebolado, essas comidinhas da casa da gente. Trabalhamos com prato feito e quentinha”, explica a anfitriã.

“Já para o público turístico, preparamos outras experiências, principalmente porque eles vêm de todas as partes do mundo. Já recebemos paulistas, franceses, argentinos… Geralmente, gostam mais de frutos do mar, como filé de peixe, peixe no molho de camarão, lagosta, além, é claro, do peixe fresquinho”.

Autodidata na arte culinária – ainda em Fortaleza, Jane trabalhou em barracas na Praia do Futuro, cultivando a excelência nesse fazer saboroso – ela destaca o amor no preparo de cada prato, além do cuidado de selecionar insumos da própria região. Da galinha caipira ao camarão, grande parte do que vai à boca é típico de Moitas. O mar, nesse sentido, é um dos maiores protagonistas dessa travessia de delícias.

“A praia fica a cinco minutos daqui e é primordial pra gente, principalmente porque recebemos o pescado fresco. Não é todo mundo que tem esse privilégio. Inclusive, a casa fica num lugar estratégico, entre o rio e o mar. A gente adora, e os clientes também. Eles sempre voltam e, por isso, queremos continuar nesse clima de simplicidade da casa-restaurante”. No alpendre ou sob as árvores, sentir o litoral na totalidade.

Mesa de mar

Cumbuquinhas de plástico, jogo americano bordado, toalha de mesa com gosto de domingo. A sensação também pode ser vivida a 15 minutos dali, no Point Lá na Barra. Tocado por Maria Denice de Sousa, 40, é outro oásis gastronômico em Moitas – mais especificamente, no assentamento Barra de Moitas, famoso devido ao turismo comunitário. Chegamos no começo da tarde para também degustar o almoço. Um prazer.

Em pouco tempo, Denice ocupa cada recipiente com fartura de atenção. Preparou para nós moqueca de camarão e galo caipira, acompanhados de arroz e salada. São dois dos pratos que mais saem no empreendimento, e não tinha como ser diferente. Leves e com gostinho de comida de mãe, apaixonam nossa equipe. Saboreamos no alpendre da morada, bastante colorida e decorada com peças feitas pela própria cozinheira.

“Além do restaurante caseiro, minha casa promove hospedagem domiciliar”, conta Denice. “Comecei a divulgar o Point Lá da Barra em agosto de 2018, e foi um período muito bom. Eu já vendia almoço, então o negócio se oficializou porque eu precisava ficar mais perto da minha família, principalmente dos meus filhos”.

Natural de Moitas, Denice passou quase 20 anos trabalhando em Fortaleza e, após engravidar, precisou deixar as crianças com a família no local de origem, enquanto tentava prover o sustento junto ao marido, pescador. A saudade e a vontade de fazer parte do cotidiano das crianças a motivou a tocar a iniciativa. Hoje, colhe os frutos por estar presente na vida de quem ama e, ao mesmo tempo, ter a comodidade de servir encantos no próprio lar.

No lugar, é possível degustar café da manhã, almoço e jantar. O foco são frutos do mar, sobretudo a moqueca de camarão já citada – incluindo também peixe, polvo, entre outros insumos. Uma preocupação é oferecer alimentação saudável, com ingredientes provenientes dos próprios quintais da comunidade. Toda essa disposição faz com que Denice, por vezes, fique até às 23h ao pé do fogão. No outro dia, acorda cedinho para começar tudo de novo.

Para ela, é honra. “Acho que vale a pena manter um restaurante na própria casa porque a gente não faz turismo de qualquer jeito. Já trabalhei para gringos e sei como é. Muitas vezes, não há valorização do nativo, quando, na verdade, podemos fazer mais. Somos daqui, sabemos a importância da natureza, o quanto ela é valiosa”.

Residindo a um quilômetro do mar – assim como bem próximo a geradores de energia eólica, tão presentes na paisagem de Moitas – Denice reflete: é preciso preservar o oceano por meio de atitudes conscientes. E isso começa, segundo ela, tendo senso crítico com a realidade que envolve o assentamento e todo o município de Amontada.

“O mar é nosso pai. Mas, hoje, estamos nos sentindo ameaçados com os projetos de energia eólica offshore na região (no qual a fonte de energia é obtida por meio da força do vento em alto-mar). Não podemos aprovar isso. Já trabalhei nas eólicas e sei como é. O barulho das turbinas, por exemplo, afasta o peixe para mais longe, e isso não é bom pra gente”. 

Até lá, suspira, olha para o próprio recanto, e sonha expandi-lo a fim de caber mais gente, promover maior conforto. A comida continuará fresquinha e suculenta, ela garante, assim como a simpatia e o bem-querer pela arte gastronômica. São coisas que não passam.

Alimento e cura

Sabe o que também não passa? O costume diário de Josivânia Alves Barbosa, 51, a dona Jô. Mal o sol aparece, ela corre para a beira da praia e vai agradecer às ondas por tudo. “Obrigado por dar alimento à minha família, por eu estar viva, por poder caminhar na praia, por poder te ver, tão maravilhoso”, repete, em prece. “Isso é simples e muito importante”.

Respeito traduzido no paladar. Dona Jô é conhecida por proporcionar uma das melhores experiências gastronômicas em Moitas. A casa-restaurante dela fica a 100 metros do oceano, ao lado de um pé de ninho. É ele quem dá sombra para os que se achegam à residência e, pisando na areia, contemplam a singela decoração e os pratos saídos da cozinha.

No nosso caso, o banquete teve Polvo Lorde (receita especial, com resultado saborosíssimo); peixe robalo no forno; lagosta servida tanto no leite de coco quanto de forma grelhada; arroz branco e arroz com lavanda – este, parte do cardápio vegano e vegetariano do espaço. Batatas caramelizadas, doces e inglesas, com cúrcuma, alho frito e azeite, completam a fartura.

“O foco da minha gastronomia são quatro opções de pescado: peixe, polvo, lagosta e mariscos. Não uso nada industrializado, utilizo tudo que pescamos e plantamos. O restaurante está com sete anos de funcionamento, e eu comecei pedindo mesas e cadeiras emprestadas. Sempre gostei de trabalhar e vi nesse negócio uma forma de ajudar meu marido, pescador, e minha família de um modo geral”, conta dona Jô, mãe de seis filhos.

Deles, temos contato com José, que é quem nos atende na mesa – sorriso de orelha a orelha. Ele não apenas conhece como presenciou a jornada da genitora. Dona Jô desenvolveu câncer no colo do útero há 15 anos e enxergou, no ato de cozinhar, um modo de não esmorecer. Ao mesmo tempo que precisou pausar o ofício de marisqueira – além disso, ela também é artesã – potencializou nessa outra arte o gosto pela vida. Comida e cura.

“Nunca fui de querer muita coisa, então isso sempre foi o necessário, o suficiente. Aprecio a natureza e, para mim, não foi difícil abrir o restaurante porque já tinha tudo em casa – a pesca, o ambiente. Tem suas dificuldades, mas a gente vai tentando fazer dar certo. E tem dado”, gargalha a cozinheira, que também hospeda pessoas em duas suítes no mesmo lar.

Outras maravilhas preparadas por ela: moqueca de couve-flor, barquinho de berinjela, bife de batata inglesa, salada de abacate e cambica (como se chama o prato de batata doce machucadinha com leite de coco fresco, tirado diretamente do coqueiro da casa, acompanhado de um pouquinho de sal). “É uma delícia”, dona Jô garante. Alguém duvida?

“Acredito que a gente vive aqui por causa de um dono que nos dá tudo de graça: o mar. É só saber cuidar dele e aproveitar. É uma pena que nem todos façam isso, mas pelo menos existem pessoas que têm essa vontade de agradecer à natureza”.

Jane, Denice e Jô são amostras disso. Filhas das ondas, da força e do sabor que vêm da água. Cozinheiras do mar.