Toda cidade é vivida no plural. Fortaleza não foge à regra. Há uma capital dentro da capital que nem parece metrópole. É o território da conversa na calçada, da brincadeira no meio da rua, do varal estendido em frente à casa. Do galego passando, dos estabelecimentos fechados após o almoço, do pratinho vendido na esquina. Parece interior – e quem sabe se não é?
Dona Antonieta, 82 – apelido de Antônia Maria de Lima – diz que é, sim. Interior na urbe. Moradora da Parangaba, todas as tardes ela reúne amigos para prosear. Basta “dar sombra”, e as cadeiras de plástico saem da varanda e tomam vento. “Se não tiver muita coisa pra fazer, já me sento. Fico até tarde da noite, enche de gente ao redor”, conta a aposentada.
Nunca teve medo de agir assim – e já faz 40 anos da prática diária. Para ela e os vizinhos, é privilégio. É também dever involuntário: gostam de estender a tradição. Nascida em Mombaça, a 72 quilômetros de Fortaleza, dona Antonieta sempre observou o costume no lugar de origem. Logo, foi natural continuar – e com todo o prazer.
“Ainda aproveito pra vender rede, pano de prato, colcha de cama…”, enumera, os olhos passeando por Zeta Moreira, 62, e Antônio Lins, 86, ambos ao lado dela na tarde em que nos conhecemos. “A gente conversa sobre tudo, principalmente os assuntos do dia a dia. Família, religião, política. E é bom. Tem um segurança no mercadinho da esquina e uma delegacia aqui próximo. Ficamos tranquilos. Minha casa é pequenininha, mas aqui eu tenho o mundo”.
Universo que se estende e alcança outros bairros. Ruralismos urbanos. No Parque São José, a galera do futebol ocupa literalmente o meio da rua para garantir a pelada. Feito a trupe mais antiga, também iniciam o expediente cedo, por volta das 15h. A marcação é pelo WhatsApp, mas, ali, celular nenhum ganha do corpo a corpo. A disputa segue até que todos se cansem.
“Aqui é a rua de cima, e existe a rua de baixo. Tem futevôlei tanto aqui quanto lá”, dizem, invocando ainda outras modalidades do jogo, a exemplo do futmesa. Quando um carro passa, é balela: alguém fala um xingamento e a brincadeira é desfeita. Mas é só o automóvel sair e tudo volta ao normal. “A gente cresceu junto, e sempre vem chegando mais pessoas”.
Nessa simplicidade de não precisar de muito para ser feliz e driblar a velocidade da rotina, é fácil desbravar outras interioridades fortalezenses. Preste atenção. No Mondubim, José Walter e além, roupas estendidas em plena avenida formam um tapete vertical colorido e assimétrico. Na Aerolândia, cavalo e carroça transitando são comuns, invocando paisagem campestre. No São João do Tauape, o silêncio do meio dia se estende até o meio da tarde: comércio nenhum aberto. Quem sabe se não é mesmo o interior?
É tudo herança sertaneja
Pois saiba que Fortaleza é cidade sertaneja. Foi quem acolheu os flagelados da seca nos períodos mais intensos do fenômeno, sobretudo no século XIX. Conta-se que, durante o cultivo do algodão, o trem que carregava mercadoria via trem também transportava homens, mulheres e crianças fugindo do calor e da fome.
“Há uma vasta bibliografia sobre essas levas de flagelados que chegavam em Fortaleza. Esse movimento migratório – acontecido, em média, de 10 em 10 anos devido ao agravamento do período seco pela aridez da área sertaneja – é um dos dados que explica a adoção de costumes do interior na capital”, explica o geógrafo José Borzacchiello da Silva, professor da Universidade Federal do Ceará e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A presença maciça da população sertaneja por essas bandas deu origem, inclusive, a bairros geralmente distantes da urbanização implantada de forma restrita no Centro, Jacarecanga e Aldeota naquela época. Logo, se a unidade central da cidade estava totalmente renovada, o entorno permaneceu rural, herdando hábitos dessa atmosfera.
Curioso é perceber que, mesmo comunidades como o Campo do América – encravado na Aldeota, bairro nobre da metrópole – respiram ares interioranos. Para Borzacchiello, é resultado do sertão se impondo, assim como acontece ao longo da Leste Oeste, em toda a área do Grande Pirambu, Cristo Redentor e Conjunto Ceará.
“São movimentos aparentemente espontâneos – há algo de organização, embora não saibamos como se dá – mas também de resistência. Práticas que resistem ao discurso do medo, da violência. Se levarmos em conta apenas o que é divulgado pela mídia, achamos que o crime está em toda parte quando, na verdade, ele é localizado. As pessoas desses lugares, então, reagem, são resistentes a isso”.
Solidariedade e vigilância
E se chegamos a localidades nesse formato e damos de cara com pessoas chamando umas às outras pelo nome – se não for assim, a referência é ser “o filho de fulana” ou “o primo de sicrano” – é porque tem a ver com questões de solidariedade e vigilância. O vizinho que pede uma xícara de café, a vizinha que precisa de alho e recorre à outra, a criança que bate no portão do amigo para convocar à brincadeira: parecem família.
“É um aspecto extremamente importante dessa vivência de interior na capital: há essa liberdade e contato humano, outro legado do sertão nordestino”, pontua José Borzacchiello.
“Nesse sentido, é preciso também destacar a organização em casas geminadas (com a parede em comum, possibilitando ouvir, por exemplo, o ruído do gancho da rede de uma residência em outra), e a conservação do verde. Enquanto que, nas áreas caracterizadas pelos edifícios, há jardins planejados, com grama, nos territórios com maior solidariedade há a goiabeira, o cajueiro, o mamoeiro”.
Não à toa, o símbolo do progresso para comunidades periféricas é o asfalto. E o asfalto, quando chega, beira a porta dos lares. Logo, é bastante comum ter pequenos jardins em frente às residências, organizados de forma extremamente rústica, com muitas mudas. Assim, ainda de pijama ou no fim da tarde, moradores abrem a porta para regar as plantas e, de quebra, varrer a calçada, diminuir a poeira.
“Eles não são tão dependentes dos serviços públicos. É impossível você ver pessoas ‘de prédio’ varrendo calçada – às vezes, nem os funcionários varrem. No entanto, nessas áreas, você percebe esse hábito de ter o controle do lixo, por vezes até aguardando a passagem do caminhão da coleta”.
Sabe outra coisa bastante comum nessas praças? Barbearias tradicionais feito a do seu Edson Barbosa, 73. Ali na rua Carlos Amora, bairro Parangaba, ele se reveza com um auxiliar para dar conta da demanda. Na entrada, a clientela ainda tem possibilidade de comprar queijo ou até sandálias a R$10. “O povo gosta”, festeja.
Pertinho dali, amigos de meia idade se revezam no jogo de baralho entre uma pinga e outra. Arnoldo Vidal, 42, é um deles. Enquanto aguarda nova corrida ou dá pausa voluntária ao expediente, aproveita para descansar a alma. Joguinho diário há mais de 20 anos. Mesma quantidade de tempo que Carlos Alberto, 42, percorre as ruas vendendo utensílios de plástico. Sai pelas ruas gritando alto, chamando moradores para mais perto. O velho galego. Vai de porta em porta. É preciso lucrar.
No principiar da noite, mais figuras adentram o panorama. O carro da farmácia passando pelos logradouros da comunidade Sítio Córrego, anunciando novidades; seu José de Arimateia, 63, com o carro de milho, despertando paladares de segunda a sábado no Bairro Ellery; a vendedora de pratinho na frente de casa, dona Anaisa Farias, 48, também no Ellery.
Fomos até esta última. Rodeada de quitutes que vão de bolo confeitado à macarronada – prontamente degustada (e aprovada) por nossa equipe – diz que gosta de morar ali e saber-se querida pelo público. “Em bairro nobre, o pessoal não vai querer sentar em mesinha de gente pobre pra comer. Prefiro que seja assim. A gente fica mais à vontade, pode vender as coisinha da gente… Só não pode dormir de porta aberta”, gargalha.
“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”, escreveu Leon Tolstoi (1828-1910). Olhar para essa Fortaleza um tanto mais lenta, corriqueira e igualmente afetuosa dá traços de uma pintura bonita e aconchegante. É outro interior: convida a entrar.