Contrabaixista cearense Jorge Helder lança 'Samba Doce', primeiro álbum autoral

O disco solo do músico chega pelo Selo Sesc e ilumina uma carreira em defesa da música brasileira

A tradução de uma vida dedicada à arte. “Samba Doce” mergulha na trajetória cronológica musical de Jorge Helder. O contrabaixista é um dos profissionais mais requisitados nos palcos e estúdios do País. O primeiro disco solo do cearense chega pelo Selo Sesc (SP) e já pode ser ouvido nos serviços de streaming a partir de hoje. Fincado no samba-jazz, o repertório ilumina diferentes momentos destes 40 anos de carreira. 

Parcerias de longa data marcam presença. A construção e estilo de cada uma das faixas bebe nas características individuais dos convidados. “A ideia inicial era colocar amigos de todas as cidades. Não deu, faltou gente”, defende Jorge Helder. Espontaneamente, o disco começou a ser gravado em 2013, e o projeto foi ganhando consistência com o tempo. 

Participam, entre outras sumidades, Chico Buarque, Aldir Blanc (1946-2020), Dori Caymmi, Rosa Passos, Stefano Bollani, Renato Braz, Lula Galvão, Erivelton Silva, grupo Boca Livre, Pantico Rocha, Fausto Nilo, Orquestra Atlântica e a Orquestra de Cordas de São Petersburgo. As dez composições selecionadas passeiam por diferentes décadas. 

A mais antiga é “Tema Novo”, escrita em 1983 quando Helder ainda morava em Brasília. A mais recente é de 2017, falamos de “Samba Doce”. A faixa-título inaugura o álbum e traz a antiga cumplicidade entre Jorge Helder, Lula Galvão (violão) e Erivelton Silva (bateria). Essa energia está presente na sofisticação instrumental que o tema apresenta. 

Escute "Samba Doce" aqui.

No começo dos anos 1990, o trio gravou “Curare” (1991), “Festa” (1993) e “Pano Pra Manga” (1996). Os títulos compõem os primeiros registros em estúdio da cantora e compositora Rosa Passos. A voz da baiana repercute suave e poderosa em “Inocente Blues”. A ambientação soturna e urbana é embalada no espírito das big bands e reluz a atuação da Orquestra Atlântica. O grupo instrumental também marca espaço com a esperta “Passo o Ponto”. 

“Vagaroso” (quinto trabalho pela ordem das faixas) nos emociona pela profunda delicadeza. Foi composta no violão por Helder e transcrita para o piano. Some as contribuição do pianista Marcos Nimrichter, Paulo Aragão (arranjo de cordas) e Nailor Proveta (sax alto). “Quando você chama as pessoas certas, dá nisso. É meu lado de produtor, sabe. Estou sempre trabalhando com muita gente nesta área. Você acaba descobrindo que precisa encontrar a identidade entre o músico e a música”, divide. 

Desde 1993, Jorge Helder participa da gravação de discos e shows de Chico Buarque pelo Brasil e exterior. Começou com a turnê pela Europa e solidificou-se a partir do LP “Paratodos” (1993). “Samba Doce” reúne três parcerias desta jornada. Chico Buarque prestigia o caro amigo e entrega sua voz à versão de “Bolero Blues”. A composição integra o álbum “Carioca”, de 2006. Em “Samba Doce”, a trinca escrita com o ícone da MPB é completada com as canções “Rubato” e “Casualmente”. A primeira, feita para o disco “Chico” (2011), ganha leitura do cantor Renato Braz. 

Por sua vez, “Casualmente” (do LP “Caravanas”, de 2017) é cantada pelo grupo Boca Livre, formado por Zé Renato, David Tygel, Lourenço Baeta e Mauricio Maestro. Aqui, outro brilho é a bateria de Pantico Rocha. “Entre outros cuidados, tive a atenção de chamar os amigos que tivessem identidade com cada música”, argumenta o cearense. 

Mistura

Um dos destaques de “Samba Doce” é “Dorivá”, criada por Jorge Helder e o imortal Aldir Blanc (1946-2020). A letra do poeta homenageia Dorival Caymmi (1914-2008). A memória de como esta cativante peça foi criada é viva na mente do baixista. A parceria remonta ao ano de 2003. Por conta de um imprevisto, Jorge Helder registrou o esboço da canção no gravador de brinquedo da filha. “Chegando na casa dele, o Aldir riu pra caramba. ‘Ó, vem ver aqui o gravador do Jorge Helder’”, relembra com alegria. 

Aldir aprovou a canção e produziu a letra em menos de duas semanas. A poesia atemporal do carioca esmiuça a riqueza das raízes brasileiras.

“Fala dessa mistura de informações que emociona. Das muitas cores. A partir da letra, eu quis fazer toda essa combinação de temas na música. É forte. São várias combinações”, adianta. 

Orgulhoso, Jorge Helder aponta cada elemento deste afro samba que brilha no disco. Do piano de João Carlos Coutinho à levada do ijexá. Do matrimônio entre baixo é violão, consolidando espaço para o arranjo de cordas intuitivo de Mario Adnet. 

O cearense tem sua marca em mais de 350 discos. São obras com Caetano Veloso, Ney Matogrosso, João Bosco, Miúcha (1937-2018), Maria Bethânia, Gal Costa, Elza Soares, Roberto Carlos, Joyce Moreno e Adriana Calcanhoto. Entre os internacionais estão o francês Henri Salvador, a cubana Omara Portuondo, o italiano Stefano Bollani, as portuguesas Mariza, Carminho e a japonesa Lisa Ono. 

Neste percurso artístico, dividiu estúdio e palco com Joyce Moreno, Francis Hime, Leny Andrade, Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, Roberta Sá, Moacyr Luz, Alexandre Pires, Ivete Sangalo, Angela Maria, Bebel Gilberto, Rita Lee, Jards Macalé, Roberto Menescal, Carlos Lyra, João Donato, Elba Ramalho, Fernanda Abreu, Luiz Melodia (1951-2017). 

Fausto Nilo é outro nome que figura na espetacular lista. O arquiteto, compositor e poeta guarda especial presença em “Samba Doce”. Parceiro de Geraldo Azevedo, Moraes Moreira (1947-2020) e de tantos outros artistas, ele desenhou a arte da capa.

Uma fotografia com três crianças africanas despertou o olhar de Jorge Helder. Elas saltam em uma dança, dando a impressão de que flutuam. Como se sambassem. Ao visitar o conterrâneo, a inspiração daquela imagem veio à tona. “Vi o Fausto fazendo uns desenhos com grafite. Coisas lindas, me mostrou várias. Nessas noite, eu disse: ‘Você vai fazer a capa do meu CD. Vai fazer e quero com a assinatura desse grafite. Ficou essa belezura, simples e muito bacana”, argumenta. 

Trajetória

Jorge Helder divide que começo da vida artística em Fortaleza foi fundamental. “Tudo que aprendi com meu pai, minha tia e com os amigos. Com Teti, Rodger Rogério, Calé, Lúcio Ricardo, Mona Gadelha. Todo esse pessoal, eu toquei e trabalhei. Os músicos Carlinhos Patriolino, Carlinhos Ferreira que se foi. Estou esquecendo de muita gente. Todos foram importantes em nossa vida. Peguei uma base muito boa do lado nordestino. De tocar baião e música muito brasileira”, descreve. 

Quanto ao poder do samba, o cearense cita o compadre Wilson das Neves (1936-2017), de quem ouvia a máxima de que “'Samba é samba”. “O samba além de ser doce, ele tem que ser salgado, tem que ser azedo, forte. Tem que se negro. Tem que ser branco. Tudo. Todos os estilos de samba. Partido alto, pagode. Importante é ter uma cabeça aberta para todos os gêneros musicais. Não ter preconceito nenhum”, conclui Jorge Helder. 

Samba Doce, de Jorge Helder 
2020, 10 faixas
Selo Sesc
Disponível nas plataformas de streaming