Imponente e entroncado, às vezes invisível no fluxo apressado do Centro, o Sobrado Doutor José Lourenço é o mais novo debutante de Fortaleza. Não parece. A grandiosa arquitetura do prédio, datado do século XIX, remonta a um tempo outro, com muita história para contar. É um dos motivos pelo qual aconselho: vá descobri-lo.
Chegamos pela manhã, tampouco o equipamento abriu as portas. A placa com o nome dele reluz sob o sol das nove. Lá dentro, Geórgia Mara Viana sorri por trás da máscara. É ela quem primeiro nos acolhe, e já vai adiantando informações. Fala sobre a cor das paredes, a textura do piso, o que vemos e o que não vemos no lugar. Uma enciclopédia.
“Minha primeira participação foi na restauração do Sobrado, há 15 anos”, introduz a historiadora, educadora, conservadora e restauradora do patrimônio. Antes desse processo, o espaço já era presença e influência. Pertenceu ao médico e político José Lourenço de Castro e Silva (1808-1874), abrigando a residência dele nos pavimentos superiores, com uso comercial no térreo.
Devido à morte do proprietário, o prédio foi ocupado pelo Tribunal da Relação de Fortaleza. Na sequência, conta-se que lá funcionaram também a Fênix Caixeiral e a Prefeitura Municipal da Capital. Sem prejuízo das funções comerciais no térreo, nos primeiros anos do século XIX comportou ainda, nos pavimentos superiores, lojas, pensões e até bordéis.
O diálogo com essas particularidades da casa é presente em cada recinto. Domingos Linheiro foi o arquiteto responsável pelo restauro do lar. Transpondo as verdes portas do equipamento – charme bonito e particular – damos de cara com a réplica do edifício. Ali, sentimos: há muito o que desbravar.
Impressão confirmada nas peças integrantes da mostra “Sobrado Dr. José Lourenço - Percursos Históricos”, em cartaz para celebrar os 15 anos de aniversário – foi em 2007 a inauguração do lugar tal qual é hoje, pelo Governo do Estado do Ceará. A exposição resgata os caminhos do sobrado, ao mesmo tempo que aponta para o futuro. São fotografias, vídeos, azulejos e obras em sintonia: ponte entre memória e realidade.
“O Sobrado é uma conquista da cidade. A ideia do Governo, à época da restauração, era que ele fosse anexo ao Museu do Ceará. Houve, porém, todo um movimento de artistas plásticos para que o espaço fosse um recanto das Artes Visuais”, explica Germana Vitoriano, diretora da casa. Com Geórgia, ela também segue conosco durante a visita. Muito o que desbravar.
Tantos recantos
Três pisos abrangem a existência histórica do Sobrado – desde sempre um poderoso instrumento de comunicação entre sociedade, classe artística e preservação patrimonial. Na ocasião de nossa passagem, apenas a mostra comemorativa estava em cartaz. Detalhe: brevemente, na última semana de agosto, o equipamento deve fechar as portas para manutenção. A torcida é para que seja rápida. Urgência que só reforça: não tarde a visitá-lo.
Ainda no térreo, percebemos estruturas bastante conservadas, fruto do cuidado. Um exemplo são os azulejos portugueses, presentes desde tempos imemoriais. A restauração do edifício, há exatos 16 anos, foi realizada abrindo espaço exatamente para que permanecesse a beleza e o enriquecimento da história do local. É fácil constatar isso.
Passinhos adiante, damos de cara com o Espaço Café, onde acontece a atividade “Café do Zé”. Apesar de não possuir frequência determinada, a ação tem o intuito de reunir artistas, professores, pesquisadores e todos os que desejam se unir a reflexões sobre arte e vida.
No espaço, há uma obra de Sérvulo Esmeraldo (1929-2017) – forma de prestar tributo ao artista plástico cratense, tão essencial na trajetória do Sobrado, bem como transparecer a importância da esposa dele, a curadora Dodora Guimarães, na salvaguarda e fortalecimento do equipamento. “Eles foram alguns de nossos pilares”, sublinha Germana.
Os outros alicerces humanos se constroem a cada dia. Gerações de artistas e admiradores do fazer intuitivo se encontram no ambiente. Muitos nomes hoje consagrados no segmento das Artes Visuais começaram expondo, em equipamento público, no Sobrado. Narcélio Grud, Sérgio Gurgel, Artur Bombonato, Paula Siebra e o coletivo Monstra são alguns.
No ano passado, um dos pontos de virada para um maior contato do Sobrado com o público foi a mostra “Rarefeito”, sobretudo devido à obra “Proteja Suas Amigas”, uma grande bandeira de 6mx3m. Assinada pelo coletivo Terroristas Del Amor, provocou bem-vindo frisson ao estampar a fachada do equipamento. Nela, a frase grita no Centro a importância do afeto. Conforme Germana, “a ideia do Sobrado é ser esse espaço de resistência”.
Continuando o giro, do Espaço Café dá para ver o Mezanino, reservado especialmente para mostras de novos artistas, instalações, intervenções e performances. Bem perto dele, a biblioteca da casa, com títulos sobre Arte, Patrimônio e História, também é puro aconchego. Crianças se alegram no espaço, a partir de uma série de atividades lúdicas.
Uma belíssima obra do arquiteto Campelo Costa (1939-2022) e outra sobre o período do funcionamento dos bordéis no local completam o visual. Mais adiante, o auditório, comportando 33 lugares.
Do segundo para o terceiro piso, uma íngreme escada convida a adentrar mais um portal – quem não puder passar por ela, não tem problema: o Sobrado é todo adaptado e inclusivo. Mas, quem puder, não deixe de experimentar a sensação. Difícil não fazer um registro nos degraus. Eles dão acesso ao compartimento que nos aproxima ainda mais da cidade.
Sempre em frente
A aproximação é devido às janelas abertas, ao vento que corre, ao olhar junto dos telhados daquela parte do Centro. Como era tudo antes de tudo isso? Pergunta que rodeia. O fato de ocuparmos o piso de madeira original do século XIX e observarmos as retas, linhas e arcos fortalece a ideia. É como se passado, presente e futuro se encontrassem ali.
“Nas redes sociais, quando havia exposições, o interesse sempre foi explorar o tipo de conteúdo referente a elas – sobre os artistas, as obras. Mas, quando ficamos sem mostras, como no começo da pandemia, a intenção foi promover a descoberta do espaço por meio da arquitetura. Falar de artistas cearenses contemporâneos e clássicos, dialogar com a população por meio da memória do que aconteceu aqui”, explica Daniel Filipe, analista de cultura, responsável por manter as plataformas digitais da casa. Ele também nos acompanhou no passeio.
Esse movimento deve seguir em frente. Para os próximos 15 anos, Germana Vitoriano deseja ampliação do vigor. “Uma das marcas do Sobrado é que ele é um espaço muito inclusivo; então, que a gente consiga fortalecê-lo cada vez mais, ampliar os públicos”. Daniel concorda: “Estamos num prédio antigo, mas é necessário entendê-lo em diálogo com a cidade, com o tempo, a arte, com o hoje de todos os tempos”.
Geórgia Mara conclui: “O Sobrado fala da modificação do Centro de Fortaleza. Logo, é a nossa história. Se passarmos isso para as outras gerações, dos mais novos aos adultos, conseguiremos uma mudança muito grande. Às vezes, não reconhecemos nossa própria trajetória. E se o equipamento está aqui, ao vivo, na prática, devemos dar importância. Ele existiu, existe e fazemos parte”.
Nossa última passada é na lojinha. Artesanatos, livros, CDs, ímãs, camisas e toda a sorte de itens feitos por quilombolas, indígenas e multidão de nomes da arte cearense nos deixa sem saída: é preciso levar algo. Talvez para que o Sobrado nunca saia da gente. More também em nossa casa e nas lembranças. Melhor: não deixe de ser visitado e de pulsar.
Na Rua Major Facundo, número 154, tem um universo com os sonhos de uma debutante e a riqueza de quem sabe que o tempo é rei. Vá descobri-lo.
Serviço
Sobrado Dr. José Lourenço
Rua Major Facundo, 154, Centro. Visitação: de terça a sábado (até sexta, de 9h às 16h, com acesso até 15h30; aos sábados, de 9h às 13h, com acesso até às 12h30). Gratuito. Contato: (85) 3101-8826