São mais de 50 anos de carreira, estudos no Brasil e no mundo dedicados à obra da artista, dezenas de composições, experiências com instrumentos diversos e misturas espontâneas entre os ditos “erudito” e “popular”. Apesar de tudo, a instrumentista e compositora paulista Léa Freire tem reconhecimento aquém do merecido no País.
Uma boa oportunidade para o público de Fortaleza conhecê-la — e de perto — ocorre em uma agenda especial da artista na Capital. A partir da circulação do documentário “A Música Natureza de Léa Freire”, do cineasta Lucas Weglinski, a instrumentista participa de uma oficina musical — na Universidade Estadual do Ceará, na quinta (13) —, uma sessão do filme e um concerto com participação especial de músicos cearenses — ambos na programação de 11 anos do Cinema do Dragão, no domingo (15).
Piano, flauta e mais
Em entrevista ao Verso por telefone, Léa aponta duas motivações principais para o “relativo silêncio” dedicado à carreira dela no Brasil: “É porque sou mulher — tem preconceito, ‘mulher não escreve’, uma bobagem tamanha — e porque, se a pessoa não entende o que você é, coloca na caixa do ‘pra depois’, mas esse ‘depois’ se torna definitivo, ‘esquece lá porque ela não sabe como se classificar’”, avalia.
A “falta” de classificação da arte de Léa é fruto de um interesse múltiplo da artista em misturar elementos e instrumentos clássicos e populares, indo em especial em direção ao improviso do choro e do jazz, por exemplo.
As misturas foram um caminho natural para a artista de 67 anos. “Minha família é muito musical, especialmente minha mãe, então na minha casa sempre se ouviu bastante música, a gente tinha uma vitrola, ficava dançando na sala, inventando coreografias”, lembra.
Ainda cedo, aos sete anos, Léa começou a estudar piano, inspirada em ter as mesmas habilidades que tinha a mãe. Ao encontrar uma professora que permitia o improviso, deslanchou. Aos 11, na escola, teve que aprender flauta doce. Já aos 15, ganhou uma flauta transversal do pai.
Entre o fim da adolescência e início da vida adulta, a instrumentista se aproximou da cena do choro na noite de São Paulo, passou a circular na cena musical da boemia e também a dar aula.
“Não pensei numa carreira, tanto que, quando vi, já estava música. Nunca escolhi, racionalizei”, considera. Viu-se profissional, diz, quando “começaram a pedir documentos. “Na época, a gente tinha que ter a carteira da censura federal, porque era ditadura, não podia exercer profissão de artista sem ter um registro na polícia”, lembra.
Visibilidade além de Léa
Para Lucas Weglinski, o choque ao conhecer Léa, em 2017, foi o que o levou a querer contar a história da artista pelo cinema. “Essa é uma informação urgente para se fazer um filme e apresentar essa brasileira para o próprio Brasil”, lembra ter pensado.
“Fiquei chocado, encantado, da gente ter uma compositora tão importante na mesma época que a gente, uma mulher, brasileira, que faz uma música tão forte, e eu, perto dos meus 40 anos, não conhecer uma figura tão importante”, partilha ao Verso.
“A Léa vem trazendo a cultura brasileira, as festas populares, bota um maracatu, coisa que você não vai ouvir normalmente numa orquestra. Com certeza existe um preconceito desse universo, mas a coisa principal é realmente o machismo e a misoginia que existem na música instrumental”, ecoa o diretor.
Léa conta que, ao surgir o convite para a concretização da obra, duvidou se a própria trajetória “daria assunto para um filme”. “No fim, ficou uma história maravilhosa que tem uma ênfase em todo um entorno. Não sou só eu, tem eu e aquilo que estava em volta de mim na época”, destaca.
Tal entorno é, ele mesmo, formado por diferentes nomes que, assim como Léa, são ao mesmo tempo incontornáveis na história da música brasileira e esquecidos pela narrativa “oficial”. Incluem-se, aí, figuras como a cantora Alaíde Costa, com quem a instrumentista morou, e Filó Machado, outro parceiro musical.
“Conforme a gente foi adentrando a biografia da Léa, foi também descobrindo esse grupo que proporcionou a essa menina descobrir o lugar dela na música. É muito importante honrar esses movimentos que, como a Léa, passam por silenciamento, apagamento”, destaca Lucas.
Na avaliação do cineasta, a relação do Brasil e do público brasileiro com a arte de Léa é “simbólica de como a gente trata nossa cultura”. Ele, no entanto, destaca e celebra o que descreve como uma “revisão anticolonial, antimachista, antirracista e anti-homofóbica”.
“Assim, começa-se a ter uma sensibilidade maior à grande diversidade e pluralidade da nossa cultura. O filme nasce desse desejo de celebrar e lembrar para o Brasil que ele é muito rico culturalmente”, sustenta.
“Experiência completa” com Léa
A circulação de “A Música Natureza de Léa Freire” tem sido marcada por atividades que alargam o contato do público com a obra da artista para além do filme. Fortaleza recebe o “pacote completo”, como ela mesma define, com exibição do filme, debate, concerto especial e formação.
A primeira atividade é a oficina gratuita “Percepção para Improvisação”, que acontece na sexta-feira (13), de 10 às 12 horas, no Campus Itaperi, da Universidade Estadual do Ceará. A ação acontece em parceria com o flautista Heriberto Porto, professor da instituição e amigo de Léa. São 30 vagas e a inscrição é por ordem de chegada.
Já no domingo (15), a partir das 17 horas, ocorre a sessão do documentário seguida de concerto com Léa, Heriberto, a pianista Nelma Dahas e o baterista Michael da Silva. As ações compõem o aniversário de 11 anos do Cinema do Dragão e têm ingresso custando R$ 16 (inteira) e R$ 8 (meia).
A agenda especial é ressaltada por Lucas. “Imagina ter a condição de viver uma oficina musical, ir para a sala de cinema assistir à história de vida dela e, no final, vê-la ao vivo fazendo música junto com pessoas da sua cidade. É um ciclo, uma experiência completa”, resume.
Ele destaca, ainda, a possibilidade de debate pós-sessão. “A gente acaba conversando com o público e, muitas vezes, ouvindo mulheres, de jovens a mais velhas, se sentindo representadas naquela história”, acrescenta.
“Se as pessoas se interessam por aquilo e querem conversar mais, acho super importante porque reforça o objetivo da história toda, que é inspirar as pessoas”, dialoga Léa.
Oficina com Léa Freire
- Quando: sexta-feira, 13, a partir de 10 horas
- Onde: Bloco F do Campus Itaperi da Universidade Estadual do Ceará (Avenida Doutor Silas Munguba, 1700 - Itaperi)
- Entrada gratuita, para estudantes de música de qualquer instituição e professores (30 vagas, com inscrições por ordem de chegada)
Sessão “Nas trilhas do Dragão” com exibição do filme “A Música Natureza de Léa Freire” + concerto com Léa Freire
- Quando: domingo, 15, às 17 horas
- Onde: Cinema do Dragão (rua Dragão do Mar, 81)
- Quanto: R$ 16 (inteira) e R$ 8 (meia)
- Mais informações: @cinemadodragao